© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 6 de junho de 2012

O céu do meu tio Luís

Quando era pirralho, desesperava os meus pais e tios com rajadas de perguntas sobre o sol, o céu e as estrelas, entre outras sobre a natureza em geral e os dinossáurios em particular. Curiosamente, era o meu tio Luís quem mais se empolgava com as minhas pertinentes questões bio-astrofísicas. Tinha vivido uma vida intensa no Congo Belga, numa multinacional, pelo que selva, répteis e céus africanos era assunto sério, digno de chamada a primeiro plano, anterior às inúmeras guerras facínoras que por lá presenciou e que por cá o traumatizou, até ao dia de sua morte eivado por gânglios linfáticos.

Ainda hoje preservo extensa correspondência entre nós, desde a minha primária até ao meu secundário, altura em que veio definitivamente jazer ao seu país que tão mal o tinha tratado. Do alto do seu metro e oitenta e picos, mantinha uma figura impecável. Cabelo branco, suavemente azulado, estirado para trás com ajuda de brilhantina francesa tenuemente perfumada que importou durante décadas. Cútis ligeiramente queimada por África. Pernas e pés longos, à holandês. Sem surpresa, era alvo de fulminante interesse por parte das senhoras mais púdicas da alta burguesia da metrópole, cada vez que por lá se deslocava e permanecia dois meses por ano com a sua legítima, minha tia, Tia Ritinha. Era um homem letrado pela vida, e pela faculdade de arquitectura de Bruxelas, profusamente conhecedor de todo o tipo de volumes e de planos, embora nunca tivesse desdenhado outro tipo de curvas.

«Léopoldville, 29 de Setembro de 1978

Mui estimado e querido sobrinho, (…) em boa verdade o céu não tem cor, foi pintado pelo mais escuro breu obscurantista. Se durante o dia vês azul, é devido à refracção da luz branca solar nas moléculas da atmosfera, onde predominam os raios azuis e turquesa do arco-íris. A camada da atmosfera é nossa amiga, funciona como um prisma de quartzo, idêntico aos que encontraste com esmero na quinta, e decompõe a luz branca nas sete cores. Quando te levantas e vais para o colégio, ou quando voltas depois do Pôr-do-sol, o horizonte é vermelho-laranja porque o sol esboça uma tangente sobre a Terra e os seus raios percorrem mais espaço e mais partículas, desviando para cima os azuis, encaminhando para os teus olhos aquelas cores maravilhosas de fogo ardente quente. A atmosfera e as nuvens cuidam de todos nós, o Sol é a fonte da Vida, as estrelas observam-nos intermitentemente durante a noite, mas o céu, esse é macaco perigoso, imenso, escuro e egoísta (...)»

Se assim for, espero que se encontre em paz. Pelo menos com o gorila.


(Exif: ISO 100, D.F. 300 mm, Abertura f/5,6, T.E 1/160s)

9 comentários:

  1. Sugeria que publicasses essas cartas....são uma maravilha....e que sorte ter um tio assim.

    Também tenho uma colecção de cartas guardadas, mas essas do foro intimo, nem sei o que lhes faça, se as deixe aos vindouros ou queime antes que eles as leiam....
    Poupam-se comentários como : Que lírica e ingénua que era a Avó / Mãe! :)))

    A foto também está luminosa como a carta.

    Que interessa o céu ser vácuo, o que interessa é vê-lo azul , rosa, verde, cinzento, todos os dias diferente, como a nossa alma.

    Bjos

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    1. Guarde, Virgínia, guarde as suas cartas num local seguro. São parte de nós, dizem bem mais do que lá encontramos escrito...

      Tenho muitas, daquelas com corzinhas nas bordas dos envelopes que significavam ser expedidas por avião. E aquele papel quase vegetal, muito fino (se calhar para não pesar tanto, não sei)... E as caligrafias espetaculares, rebuscadas, são tesouros!

      Também escrevi algumas cartas de amor estupidamente ridículas, mas como diz o Poeta... enfim! Os nossos filhos só saberão o que foi isso quando as virem, se as virem. Vale a pena guardar, sim.

      Bjos,
      paulo

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  2. Sim, essas de papel transparente eram usadas par pesar menos, nós escrevíamos muitas cartas para a nossa Avó da India nesse papel. Mal a conhecíamos, mas contávamos tudo. Dessas experiências fica o gosto de escrever. Durante tres anos eu e o meu ex- escrevemo-nos de Lx para Coimbra....centenas de cartas, eram duas por semana, acreditas? O meu ex- escrevia maravilhosamente e as cartas dele nunca deitarei fora...as minhas eram românticas e sonhadoras, sempre esperançosas e muito naifs.

    Tenho cartas que escrevi aos meus pais e que a minha mae tinha guardadas, mas são poucas....

    Agora é tudo emails....:)) e posts....e não se guarda nada, embora fique tudo no ciberespaço.

    bjo

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    1. Amiga Virgínia, olhe que já perdi muita coisa por este ciberespaço fora. Um dia um amigo informático me disse que guardava tudo em discos externos, fazia constantes backups, mas tudo o que era importante, imprimia e, porque não, desde que não fosse notas falsas, guardava no cofre do banco.

      Bjos,
      paulo

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  3. Ai! Paulo não sei, não. As cartas que guardamos são bocados de nós e bocados de outros, que foram,
    em seu tempo, importantes para nós. Só podem, devem, ser lidas por quem as recebeu ou por quem as escreveu.
    Deixa-las cá para que outros olhos, espúrios, as devassem, não me parece ser boa solução.
    Ando, agora, a preparar-me para queimar tudo quanto o meu filho Miguel me escreveu, muito nosso, só nosso.
    E, de seguida, passarei ao que, um dia, contou, mas hoje já não conta. Ou... não pode, nem deve contar.
    Pense bem nisto, que é conselho avisado!
    bjo

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    1. Querida Helena,

      Tudo depende do que contêm. Se há segredos que prevalecem, que em termos alguns queiramos que se saibam, devemos destruir, sim. São segredos e, como tal, assim deverão permanecer. Se o que está em causa, ou é visível, é a intimidade mantida entre dois entes queridos, não sei até que ponto, bons anos depois, os descendentes devem tomar conhecimento e, quiçá, transmitir a gerações vindouras.

      De uma coisa sei bem: prometo pensar muito bem nisto. O aviso não só é avisado, como muitíssimo sensato.

      Bjos,
      paulo

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  4. Não tenho cartas guardadas. Nunca as houve que merecessem tal cuidado. Tenho alguma pena por isso... As cartas de outrora quem encontrei numa caixa, enviadas do ultramar do meu pai para a minha mãe, são das coisas mais lindas que já li. Hoje e cada vez mais parecem um valor perdido, entre muitos outros. Eu gosto de escrever e imortalizar o que sinto. Acho que esse valor não vou perder nunca.

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    1. Então ficaste com pena de já as não ter. A imortalização pela memória prevalece sobre a física... e será mesmo assim? Aqui em cima, a Helena levantou uma questão muito pertinente à qual não sei responder taxativamente.

      Beijinhos, Carla

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  5. Pois, também não sei. Mas julgo que as cartas escritas para alguém só devem ser bem entendidas por esse alguém. O mundo é de conjuntos de pessoas para além de nosso. E num conjunto muitas coisas funcionam, que num outro já funcionam de outra forma. Nunca lerás algo de igual forma ao que eu leio, se estiveres de fora. Não sei se me explico, que esta coisa das palavras por vezes não é nada fácil.

    Beijinho para ti tb...

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