© Paulo Abreu e Lima

domingo, 1 de julho de 2012

tarefa fátua

Ontem encontrei-me com os meus catorze anos. Apareceram-me lampeiros a meio do dia de trabalho, e eu que já não me lembrava deles. Apareceram-me pela mão da minha memorável colega de carteira, a Ana Clara, e eu que já não me lembrava dela.

A Ana Clara tinha dezassete anos numa turma de miúdos de catorze ou quinze. A turma era gaiata, estudiosa e competitiva. A Ana Clara era bonita e namoradeira. A turma vestia desportivo e jogava voleibol. A Ana Clara vestia sensual e jogava aos amores. A mãe estava no negócio da beleza e ela era uma excelente montra: longa madeixa loira, pele mate, perfeita de fond et de teint, malares esculpidos e olhos de tísica, com uma expressão ligeiramente bovina, que a rapariga era burrinha e com poucos entusiasmos para além da aparência e das lacerações do coração.

O seu universo estava cheio de paixões, protestos de amor eterno, crises sentimentais, rupturas encharcadas em lágrimas, ameaças de suicídio, num permanente novelo. Precisava, naturalmente, de um confidente, papel bem difícil de preencher em casting de catraios. Coube-me a mim por mor de três qualificações essenciais: altura, talento para primeiros socorros e a superior experiência de vida conferida pela leitura precoce de romances oitocentistas. Que a Ana Clara nada devia a Eugénie Grandet.

E assim o ano dos meus catorze anos correu dramático e instrutivo. Entretanto, a vida fluiu e a singularidade que nos aproximara perdeu-se em percursos oblíquos. Restava-me apenas a impressão de que casara cedo, obviamente grávida, e teria mudado para os subúrbios.

Até hoje, que me entrou pela porta. Sucessivos e avassaladores amores depois, com bastas traições de faca e alguidar, depressões e químicos a granel, a morte várias vezes próxima, uma miríade de intervenções e internamentos, esta Ana Clara é um embrulho vazio. Já não mora ninguém dentro do olhar vago da poupée de cire em que se tornou. Curiosamente, a degradação mental não foi acompanhada pelo degenerar físico. Talvez com a idade. Agora, é uma concha bonita e perfeitamente maquilhada, que, à saída, se insinua ao nosso velho porteiro gordalhufo. Ele encolhe a barriga e impa pressuroso e mesureiro, enquanto, ao lado, a companheira comprime a beiça e ajeita mentalmente a adaga na liga. Em segundos, compôs-se um triângulo de ardores. Há coisas que nunca mudam. Malheureuse Eugénie, do alto dos meus catorze anos te digo: há mais na vida do que sentir e o destino não existe.

reeditado

9 comentários:

  1. É por isso que não tenho saudades de Lisboa.

    Descobrir que as pessoas que amei, de quem fui maior amiga, com quem fiz o longo percurso do liceu e faculdade, e até a minha própria família, já não são nada daquilo que eu tenho na memória, é demasiado cruel.

    Prefiro recordá-las como eram e se as vejo fortuitamente na TV - a HR, por exemplo - falo de conta que ela é outra pessoa, não aquela com quem passava horas a fabricar um jornal da escola, a aprender a dançar o surf ou a cantar as músicas dos Beatles.

    Não se deve voltar ao passado...em geral tem-se grandes desilusões. A degradação física é quase sempre acompanhada por uma mudança mental...e é essa que custa a tragar.

    Desulpa o arrazoado....

    Bom Domingo!

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    1. Amiga Virgínia,

      A denegeração física está escrita nas células. Já a mental não depende somente da química. E, claro, Lisboa não tem nadinha a ver... :)

      Bjs

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  2. Um reviver de passado com que somos muitas vezes surpreendidos.
    Imagino o sorriso maroto ao recordá-lo e o ar triunfante (absolutamente natural) do tempo não ter sido tão inclemente contigo.
    Um grande abraço.

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    1. Não, Manuel: o tempo foi inclemente comigo, mas nunca me subjugou. A mais, não houve sorriso algum, muito pelo contrário...

      Grande abraço amigo.

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  3. Esta sua história - todas as nossas histórias são as histórias que os outros vivem -, fez-me lembrar um acontecimento recente, em que eu não reconheci alguém que, há vinte anos, atravessou naturalmente a minha vida...

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    1. Amiga Helena,

      Já li a sua história e aconselho todos a o fazerem aqui. Se me permite, nem todas as nossas histórias são as histórias que os outros vivem, muitas das nossas são passagens irrelevantes para os próprios e imensas para nós...

      Abreijos amigos

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  4. Lá isso é verdade...
    O problema é justamente esse: a diferença de relevâncias entre os vários personagens envolvidos numa mesma história. Ou, também, o facto de vinte anos tirarem toda a relevância a algo que, então, foi considerado como tal!
    :-))

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  5. E se eu quiser comentar o de cima, hum???

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    1. LOL

      Se quiseres comentar o de cima, não podes. O Renato também nunca pôde :)

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