© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

s/ título


Avistei-te por ali, pela corrente avulsa de gente que calcorreia diariamente as ruas da grande cidade. Cabelo já todo níveo assumido e descuidado, roupa três números acima, olhar desfocado e ausente. Por ali, sem saber ao que ias, quase vinte anos depois. Covarde, atalhei caminho, não te soube encarar nesse abismo, nem prolongar o meu olhar nas inúmeras rugas que te circundavam os olhos baços e sumidos, perguntando a maior de todas as imbecilidades: Olá, como estás? Não, não precisava de te falar e de te ouvir. Já mo tinham dito. Não há nada que se possa fazer para além de um olhar mutuamente contristado. Perder um anjinho deve matar muito mais do que nós próprios. Devemos morrer várias vezes e extinguirmo-nos em tudo o resto.

12 comentários:

  1. Não é isso que os anjinhos esperam de nós, tenham eles a idade que tiverem. Nem Ele!

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    1. A minha covardia impensada em não enfrentar a mãe ou a postura dela perante aquela tragédia? A minha é confessadamente horripilante; a dela, muito compreensível, acho. Foi minha namorada há muito tempo atrás, porquanto, qualquer minha abordagem já seria constrangedora... enfim.

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  2. Há tempos, aconteceu-me uma situação similar... Bloqueei completamente!

    Paulo, não considero que seja covardia mas uma defesa inconsciente por se desconhecer a possível reacção de quem não se vê há decadas.

    Isabel BP



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    1. Não tanto uma "reacção de quem não se vê há décadas", mas pelo tipo de relação que tive. Terá sido por aí...

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  3. Não consigo imaginar como pode ser dilacerante uma dor assim. O(s) modo(s) como se lhe reage diferem muito de pessoa para pessoa (e estou a lembrar-me de outros casos similares, mais antigos ou mais recentes, que retenho na memória)e são todos compreensíveis, concordo consigo.

    A sua reacção não me parece covardia nenhuma. E nem é por causa da "tragédia". Quantas vezes não encontramos, passado muito tempo, pessoas que nos foram demasiado próximas e sentimos que já não temos nada para nos dizer e por isso nem um cumprimento de circunstância faz sentido?
    Percebo o choque e o que sente, mas não tem que se sentir mal consigo por isso, digo eu.

    Beijinho :)

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    1. Certo, mas não deixa de ser muito desagradável, enfim...

      Outra coisa, a foto não tem nada a ver, é casual e foi escurecida. Credo!

      Beijinho :)

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    2. Desagradável, sim, seguramente!...
      Nunca me passou pela cabeça que a fotografia tivesse alguma coisa a ver, Paulo! O demasiado óbvio não combina nada consigo... :))

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    3. Sei, Isabel, mas, olhe, foi mais para avisar algum leitor desatento...

      Off topic: Tenho uma série de "fotos ousadas" feitas em sessões específicas para o efeito. Às vezes cabiam que nem luvas para ilustrar alguns textos, mas tenho receio que pensem que são de alguém que me seja próximo e não coloco. Qualquer dia repenso a coisa :)

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  4. Há tantas circunstancias na vida em que fugimos por nao saber o que dizer!
    Mas se nos fica na memória é porque na realidade deviamos ter sido capazes de encontrar as palavras certas!
    Quando me acontece não lhe chamo cobardia ... chamo-lhe incapacidade!... enfim mesmo! :(

    Paulo, confesso que tive que procurar a palavra covarde no dicionario. Sempre escrevi cobarde e não covarde!
    Ainda pensei que era defeito meu por ser do Porto ( hehe ) ... mas não, ambas estão correctas!

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    1. A Vida dá muitas voltas; muitas das quais apanham-nos desprecavidos...

      Em Lisboa digo covarde, no Porto transijo e sai um cobarde :)

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  5. Há sempre alguma coisa a fazer. Mesmo sem palavras. Sobretudo, se sem palavras. Eu, que perco anjos tantas vezes e, volto sempre.
    São anjos pequeninos e de asas longas os meus. Como todos os anjos.

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    1. Há, sim, Filipa. Sem palavras mas com gestos e olhares cúmplices.
      Bonitas palavras, as suas.

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