© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

os préstimos de Rosalina


Lá em cima é o local escolhido, cá em baixo a senda que inquieta os quereres que vivem sem pensar. As tentações imprevistas nascem obtusas, mais ou menos como os amores, sem olhar a hora ou a lugar, e sem rigor de apuramento. Prendem-se antes em pedaços de corpo que se envergonha exaurido nas horas matutinas, como se os minutos da noite lhe fossem os únicos dirigidos e o restante dia, de olhos abertos, pudesse apenas (pobremente) pensar. Vedado aos requintes do desejo enamorado, os dias abrigam o decoro e a decência, conservando as perdições para o pardacento da noite, nos leitos dos casais benditos e com vista ao fabrico de gente, o efectivo propósito da sua existência. Ali também havia hora do dia. Planava um cheiro a incenso forte, uma aura enfeitiçada, uns adornos de seda selvagem e um vislumbre de mulher, à espreita, na soleira da porta. Os canudos loiros enterneciam-lhe os ombros, a cintura era afinada por entre um espartilho florido, a boca era desenhada a vermelho escarlate, a cor da desonra. O chá sabia a tília com açúcar mascavado, os bolos a limão verde e a pouco doce, a mesinha encontrava-se no centro da sala e na senhorinha pérola, Rosalina bordava. Logo após as cinco saíam para a rua e sentavam-se nas mantas colocadas ao redor da figueira, sempre sob o olhar atento da guarda da dignidade. Ainda assim ele espreitava-lhe para dentro dos olhos fundos, espiava-lhe de perto as mãos delicadas, encontrava-lhe a língua a correr embaraçada, enquanto a boca sorria.

Rosalina ausentava-se sempre ao pôr-do-sol. O pôr-do-sol era a hora sombria, altura em que a luz se pousava e a luminosidade artificial se confundia com os móveis, com as janelas, com os óculos e com as rendas, todas iguais. Era hora do descanso e eles ficavam. Sempre ao Domingo, dia santo, a oração deveria ser suficiente para acautelar os corpos, a casa mantinha as portadas abertas e arejadas, os cães ladravam no quintal, a cozinha fumegava a panela da sopa, e a escada vivia sempre no mesmíssimo lugar. Os passos eram mansos pela placidez da madeira, o piso de cima abria-se em regaço, nunca havia ali ninguém. A consumação era no dia sagrado do sermão no altar, o namoro era abençoado pelo patriarca, o desaforo era em cima de uma cama quente, de Verão e de Inverno, em silêncio e sem demora. Sempre em silêncio e sem demora.

Rosalina voltava antes da noite escura. As mantas estendidas no chão, imaculadas, por baixo de dois corpos já sossegados. O vestido de flores severamente amachucado, era do assento, os canudos mais ou menos descompostos, era do vento. A boca escarlate, pequenina, tremia quase apagada. Os olhos, pretos e vivos, olhavam muito abertos para o gato. Estamos aqui, Rosalina, vou já, dizia ela na hora do recolherRosalina sorria fixada no desenho da boca. Para a semana querida, sou eu que a desenho outra vez.

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