© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 21 de março de 2014

o desnorteio do incerto

Ela estava perdida de amores. Respirava os afrontamentos do corpo, falava com os calores das palavras, olhava o mundo pincelado a magenta quente, num cruzamento fugaz entre a vontade e o medo. Espreitava todos os dias pela escada subida, miradouro para o dilúvio que se estendia em frente, sem fim à vista, quer o sol nascesse quer o sol morresse, numa improbabilidade qualquer que ninguém explicaria. Há realidades sem explicação. Há factos ininteligíveis mais fortes do que a ira da natureza, do que as coordenadas célicas, do que os bichos que alombam com cargas pesadas encosta acima, tudo observável, tudo audível, tudo perceptível.  O que não se vê pesa tanto porque se acomoda na ideia. Ganha forma na construção interna da constância, não conhece a impossibilidade e não verga com a contramão. Não há escolhas, há caminhos com direcção, há mãos que agarram sem freio que as sustenha, há passos que marcham sem barreira que os pare, há bocas que tocam na fome farta da noite. Quando assim é perde-se a força real. Perde-se o mando e a luta instala-se no corpo, entre o que parece ser e se pode comprovar, e o fundamental invisível desenhado a tinta chinesa, preta e circunspecta, precisa e concluída, na incorrecção do perfeito. 

O catavento do topo e perante isto, olha inerte para o horizonte. Vira-se sempre para o mesmo lugar, aponta o bico para o vácuo do destino, despreza as sujidades da frente fria e avança sem vacilar. Na torre da igreja o sino toca. A melodia é da hora certa, nunca falha. Ela desce, perdida de amores, senta-se no muro de pedra fria e pensa-se descoberta: perdido é o mundo, que não sabe para onde vai (o desnorteio do incerto, é infinitamente mais fácil).

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