© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 29 de maio de 2014

etapas

O dia da criança que se aproxima serve para celebrar a meninice e deveria servir para colocar a pensar quem se esquece que a vida tem um percurso. O trajecto começa quando nascemos e acaba quando morremos, e no interregno devem haver as fases dirigidas a cada ciclo que definiram por e para cada um de nós, algures num território superior ao intelecto. O meu, de fraca existência mas um tanto ou quanto ávido, apela-me para a atenção a dispensar aos cursos na sua amplitude, e começando por elas, as crianças, avalio da seguinte forma: todas deviam ter direito à infância. E direito à infância não é só direito a comida e a necessidades básicas, mas também a educação e a colo, a erros e a sucessos, a frustrações ultrapassadas e a brinquedos. E a tempo, especialmente a tempo, à perfeita autonomia de tudo quanto pertença aos adultos (isso é para os adultos). Quando olho para os olhos de uma criança atarefada ou mazelada por algum tipo de violência, sinto que lhe roubam o que de mais precioso a criancice pode ter. Ser criança é poder brincar só porque apetece, é comer gulodices mesmo quando não se pode, é ajoelhar as pernas na terra suja e saltar para dentro de poças com lama, e é, no fim disso tudo, ter um lugar para regressar.  É escolher que o céu é laranja e que o mar é cor-de-rosa, que os peixes falam e que as vacas, para além de leite, dançam nas quintas das avós, de manhã e ao entardecer, nos dias que não têm fim. 

Quando uma criança é sujeita a muitas obrigações cedo de mais, formata o cérebro pequenino em linhas rectas e direitas. Constrói uma realidade certa e plana, habitua-se a regras que não se podem quebrar, cria um interior rígido e estereotipado, tem dificuldade em gerir a diferença, a alternativa, a escolha acertada (se é que pode optar). A criança privada de amor pode escolher morar por dentro. Pode encontrar nos ninhos do próprio sangue o colo que nunca vem, pode encontrar no ar que respira a razão do seu viver, pode escolher estar sozinha à companhia alternada, de alguém a quem não dói. A criança violentada pode desistir de ser. Pode optar por respirar baixinho na ânsia do cantinho, pode falar para dentro na tentativa do esconderijo, ou pode em vez disso mostrar que está ali, que é gente, que cresceu e apareceu e que entretanto, com o tamanho dos anos e a força da vida, pode mudar o mundo. E pode ser alguém que se veja e que se sinta, pelo melhor ou pelo pior, desde que a vejam em papel de acção.


Acho que em plena actualidade ainda se pensa pouco na consequência. Ainda se age sem pensar no passo seguinte, ainda se imputam aos jovens e às criancinhas culpas que não são delas mas de um assalto à mão armada, cometido pelo povo, atarefado a atrapalhado em triunfar na vida e em vencer contendas.

Dai em diante, também sem grandes debruces, é sempre a andar vida afora. Não se quebram ciclos e como tal ninguém perde tempo a pensar  na importância da etapa. Quase todos nos centramos, mais ou menos, no jorro estabelecido (a algum local chegaremos). Lá, na beira da morte, a dependência e a doença também se encaixam numa etapa sem vida própria, um terreno baldio, um local  bafiento e formatado ao fim. Aquele onde se escolhe, dias antes e já sem dedicação, a mortalha adequada à situação. Lisa, sem tons garridos, correcta, a roçar a perfeição.

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