O dia da criança que se aproxima serve para celebrar a
meninice e deveria servir para colocar a pensar quem se esquece que a vida tem
um percurso. O trajecto começa quando nascemos e acaba quando morremos, e no
interregno devem haver as fases dirigidas a cada ciclo que definiram por e para
cada um de nós, algures num território superior ao intelecto. O meu, de
fraca existência mas um tanto ou quanto ávido, apela-me para a atenção a
dispensar aos cursos na sua amplitude, e começando por elas, as crianças, avalio
da seguinte forma: todas deviam ter direito à infância. E direito à infância
não é só direito a comida e a necessidades básicas, mas também a educação e a
colo, a erros e a sucessos, a frustrações ultrapassadas e a brinquedos. E a tempo, especialmente a tempo, à perfeita autonomia de tudo quanto pertença
aos adultos (isso é para os adultos). Quando olho para os olhos de uma criança
atarefada ou mazelada por algum tipo de violência, sinto que lhe roubam o que de
mais precioso a criancice pode ter. Ser criança é poder brincar só porque
apetece, é comer gulodices mesmo quando não se pode, é ajoelhar as pernas na
terra suja e saltar para dentro de poças com lama, e é, no fim disso tudo, ter
um lugar para regressar. É escolher que
o céu é laranja e que o mar é cor-de-rosa, que os peixes falam e que as vacas,
para além de leite, dançam nas quintas das avós, de manhã e ao entardecer, nos dias que
não têm fim.
Quando uma criança é sujeita a muitas obrigações cedo de mais,
formata o cérebro pequenino em linhas rectas e direitas. Constrói uma realidade
certa e plana, habitua-se a regras que não se podem quebrar, cria um interior
rígido e estereotipado, tem dificuldade em gerir a diferença, a alternativa, a
escolha acertada (se é que pode optar). A criança privada de amor pode
escolher morar por dentro. Pode encontrar nos ninhos do próprio sangue o colo
que nunca vem, pode encontrar no ar que respira a razão do seu viver, pode escolher
estar sozinha à companhia alternada, de alguém a quem não dói. A criança
violentada pode desistir de ser. Pode optar por respirar baixinho na ânsia do cantinho,
pode falar para dentro na tentativa do esconderijo, ou pode em vez disso mostrar
que está ali, que é gente, que cresceu e apareceu e que entretanto, com o
tamanho dos anos e a força da vida, pode mudar o mundo. E pode ser alguém
que se veja e que se sinta, pelo melhor ou pelo pior, desde que a vejam em papel de acção.
Acho que em plena actualidade ainda se pensa pouco na consequência.
Ainda se age sem pensar no passo seguinte, ainda se imputam aos jovens e às criancinhas culpas que não são delas mas de
um assalto à mão armada, cometido pelo povo, atarefado a atrapalhado em triunfar na vida e em vencer contendas.
Dai em diante, também sem grandes debruces, é sempre a andar vida afora. Não se quebram ciclos e como tal ninguém perde tempo a pensar na importância da etapa. Quase todos nos
centramos, mais ou menos, no jorro estabelecido (a algum local chegaremos). Lá, na beira da morte, a dependência e a doença também se encaixam numa etapa sem vida própria, um terreno baldio, um local bafiento e formatado ao
fim. Aquele onde se escolhe, dias antes e já sem dedicação, a mortalha adequada à situação. Lisa, sem tons garridos, correcta, a roçar a perfeição.
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