© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 12 de junho de 2014

esquecimento

Outro dia, há muitos anos, tocava na coluna da sala Xutos e Pontapés (são para mim a banda mais antiga do mundo, e são-no muito bem). Um homem alto e bonito dirige-se ao meio da multidão, coloca as mãos nos bolsos e dança ao som da música de olhos fechados e sem compromisso, a não ser com o som que lhe entrava nos ouvidos e lhe percorria o cérebro, cansado mas ainda vivo. Olhei-o de lado, tinha vergonha de o encarar distinto do semblante sério que o caracterizava. Nos outros dias era uma pessoa de pose selecta, trabalhava de um sol ao outro e tratava dos filhos como uma mãe que cuida de uma cria acabadinha de nascer (eu sei, os pais também sabem fazer isso). Nos trajectos alternou entre o amor e a lógica e errou de ambas as vezes, imagino que por dentro se questione a toda a hora onde mora o erro fatal. Nem sei que lhe diga, nem ele espera respostas da minha parte, a sobrinha que apareceu na família em primeiro lugar, para roubar colos, palmas, bilú bilús e todos os ursos de peluche do mundo, no tempo em que eles aturdiam sonhos ruins. A praia, essa, era o local sagrado. Não havia ondas que nos assustassem, nem frio que nos gelasse os ossos. Era noutra vida, só podia ser noutra vida, são memórias que restaram do tempo de coisa nenhuma, jamais na minha existência posso ter sido tão destemida e resistente. Hoje parece que alguma coisa morreu, no homem que dançava Xutos enquanto eu abanava uma saia rodada de fazer inveja à menina mais linda da minha aldeia. Alguma coisa que se chama esperança, aquela sabedoria que acusam sabiamente ser sempre a última a morrer, quando no fundo, a bem da verdade, em qualquer circunstância que pese mais do que a nossa força consegue suportar, desaparece no ar do destino. Veloz, cega, galopante. Vou convidá-lo para ouvir Xutos comigo outra vez, já decidi (desta feita sem vergonhas tolas da minha parte). Na mesma sala, a mesma música, os mesmos olhos fechados, eu de saia rodada a fazer inveja, ele de mãos nos bolsos e a vibrar com o som. Mas isso não é nada. O que interessa é que relembre que está cansado, mas ainda vivo. Não há esquecimento no mundo mais grave do que esse.

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