© Paulo Abreu e Lima

domingo, 27 de julho de 2014

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(Fotografia antiga da Nazaré. Retirada do Google)

Não me lembro de quando comecei a gostar de observar pessoas, mas lembro-me de as observar desde sempre. Em silêncio, não há palavra que me escape da boca quando olho as famílias que se apinham de roda da lancheira de praia, as que se desdobram de olho na criança na água, as que observam de perto o bebé que aproveita a hora da sesta para provar pela primeira vez o que é o corpo na areia e a adaptabilidade de uma substância, além do corpo materno. Leio letras e palavras quando tenho tempo. Folheio livros que sorvo e outros que simplesmente miro, o tipo da letra, a grossura da capa, o interlúdio da história, o objectivo do autor, quase sempre pretensioso. Quando caminho pela areia faço-o sempre muito devagar. Observo as gaivotas ao longe, as montanhas rochosas ao perto, deixo que o gelo da água me toque o tornozelo afoito, nada mais do que isso, não sou dada a sacrifícios maiores sem proveito declarado. Não tenho nunca como não regressar às origens. Temo ser velha e continuar a comer pão quente da mesma padaria, bolo macio da mesma pastelaria, peixe fresco da mesma praça. E a olhar o mesmo pôr-do-sol ao longe, como se a cada tarde o astro fosse outro e eu o olhasse sempre pela primeira vez (é mais ou menos como um amor). A vila envelhece e eu não queria olhar que acontece, ao mesmo tempo que me apetece, muito, senti-la a fazer um caminho. O meu caminho. As casas perdem tinta, as mulheres perdem saias, os homens que pescam não são substituídos por outros, a era evolui. Observo em silêncio, mas falo sempre para mim mesma e eventualmente para alguém que não veja comigo o mesmo que eu (gosto de anonimato, manias de profissão). Falo para mim que o que somos vem do tempo, que por consequência envelhece e desgasta. A praia que mais envelhece comigo é aquela, será sempre. Na feira, na faina, no mar bravio e no sítio de ondas gigantescas que quase nos roubam o sossego do norte, não há direito. As minhas avós, essas, ainda lá moram. No barquinho de chocolate doce, na compota de tomate, no pão quente da Tamar, mesmo aquela que já me deixou há muito (maneira de falar, jamais me abandonará). Essa mora comigo mas também mora na pedra onde Dom Fuas Roupinho segurou um cavalo sob ordem da divina Santa. Eu também lá habito com um ano de idade, arrumada a um pau de barraca, veloz como um lebre na direcção da água, lenta como uma tartaruga na subida do regresso (hei-de questionar-me para sempre, que espécie de pele teria eu). Às vezes penso no que as pessoas como eu julgarão de mim: se me observam com olhos de história ou se me confundem com a multidão estendida na areia da praia (impossível, há uma espécie de osmose inconfundível entre mim e o lugar). Bem feitas as contas, tudo somado, e já lá vivi uns bons anos. Volto sempre, a apreciar o silêncio. Nunca me canso dos meus cheiros, dos meus paladares, das minhas carreirinhas nas ondas maiores. Não fosse o frio e hoje aprenderia surf. Assim limito-me a observar, o que não deixa de ser uma tarefa de importância suprema, assim saibamos arrumar o que olhamos. Há tarefas hercúleas. Arrumar o que olhamos sem fazer barulho é uma delas. Entrar no frio da água é outra, mas dessa, como já perceberam, já desisti há muito.

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