© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

tanto por dizer

As necessidades relacionais surgem-nos como nos surge a fome, a sede, o frio, o calor. Sabemos delas quando a carência se assume uma realidade, e não seria demais perdermos tempo a pensar no que nos faz falta. Faço isso vezes sem conta, e descubro quase sempre acesa a necessidade de ser ouvida. Essa necessidade reflecte-se quando escrevo, quando falo, quando partilho o que quer que seja, seja com quem for. Por vezes não são os nossos que melhor nos escutam. Os nossos têm uma ideia concebida, por vezes enganada, sobre nós. Fácil perceber porquê, há sempre uma certa resistência em encarar a mudança, e eu não estou eternamente igual ao que já fui. Para a minha irmã serei sempre a irmã mais velha, mesmo quando, muitas vezes, eu me sinto a mais nova. Para o meu avô serei sempre a neta, ainda que dele cuide, se precisar de ser. Para a minha amiga de sempre eu sou a Carlota Joaquina, aquela que está pronta para o que der e vier, mesmo quando eu, Carlota Joaquina, estou mais do que pronta para lhe cair no colo. O juízo de valor é outro exemplo frequentemente executado por quem nos quer bem. Escutar de uma filha que o que mais lhe apetece é mandar uns berros à senhora a quem não deve gritar nunca, é um desencadeador importante de substâncias de apaziguamento e de fazer ver. O que é correcto, o que é educado, o que é pertinente, o que é impertinente, entre um conjunto infindável de melhoramentos com vista à intervenção prévia e cessação de estado alternativo de consciência (dizem as mães, claro, que não há lucidez maior do que a ira). Tudo correcto, mas e onde fica a aceitação e o crédito do que sentimos? Não fica, claro, os bons costumes e as boas relações querem o nosso bem, o grave é que nem sempre o nosso bem é o que nos liberta na hora H, no minuto M, no instante I, alturas em que o que precisávamos era que alguém nos escutasse, coisa que não tem de implicar grandes palavras ou intervenções. Adoptar um estranho como escuta é, como o nome indica, de uma estranheza tamanha. Há um desenquadramento, uma ausência de contexto, duas pessoas que são ouvidos e bocas libertas de construções. Aflitivo? Julgo que sim. Que fará o transeunte do banco do jardim com a minha história? Que farei eu com a vida da pessoa que me expõe o tutano do espírito numa tarde chuvosa, na mesa do lado do café? A verdade, pura e dura, é que ninguém faz nada a não ser escutar e aceitar, o que deixa o cenário envolto numa espécie de melodia isenta de obrigação. Eu sei, entra no âmbito da liberdade excessiva, talvez por isso eu me perca a pensar como conseguirei escutar tudo o que as minhas pessoas tiverem para me contar. Tenho tanto para dizer e tanto para aprender.  

4 comentários:

  1. Fico tantas vezes sem querer deixar passar o quanto gostei de ler, mas ao mesmo tempo sem ter nada a mais para acrescentar. É isto.

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    1. Acrescente, Mãe Sabichona. É sempre bom ouvir outras perspectivas...

      Obrigada. Um beijinho para si... :)

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  2. Pois eu nem sei como comentar. É tão verdade o que a CF escreve neste post. Mas também não é essa dúvida constante entre o dar e receber que nos faz viver? Eu acho que sim. E também julgo que nos faz dar mais do que esperamos receber.
    Bom Ano CF e obrigada por me permitir ler textos como este. Simultaneamente bonito, verdadeiro e desestabilizador.

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    1. Claro que nos faz viver. E querer dar, receber, ser e aprender...
      Obrigada pela simpatia Maria João. :) E um bom ano para si também.

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