© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 19 de maio de 2015

o homem do futuro

Quando eu era pequena os polícias existiam para prender os ladrões, e por sinal ainda acredito que para todas as crianças o polícia é o bom. Sendo assim, papéis invertidos dão origem a estados confusionais de consciência, daqueles que equivocam modelos, paradigmas, princípios de execução. Um polícia que ataca os bons é o equivalente a um médico que renega os medicamentos, a um professor que maldiz os alunos, a um padeiro que desmazela o forno de cozer o pão. A verdade é que o mundo parece percorrer um caminho contrário ao caminho certo, e por isso mesmo permite que uma criança perceba desde cedo que há polícias que atacam sem regra, médicos rendidos aos patrocínios, professores vendidos a preferências, e padeiros que não respeitam a riqueza que lhe nasce das mãos. Não há como controlar até ao limite do rigor, não há norma que nos proteja, nem ISO que nos regulamente a acção, há simplesmente uma consciência precoce da realidade construída pelo homem e um desmantelamento prévio de um estado protegido de existência, que cada vez termina mais cedo. Qualquer dia não há colo que valha à humanidade. Nesse tal dia, quando nas experiências do afecto a mãe de pêlo tiver morrido seca e a mãe de espinhos sobreviva à necessidade primária da subsistência, caminharemos para o futuro, que dantes, quando eu era pequena, consistia nuns homens de cabeça gigantesca e olhos vazados. Assusta-me tanto essa gente, que fujo deles como um diabo da cruz.

6 comentários:

  1. Se a esperança for mesmo a última a morrer, e os meios de comunicação social pararem definitivamente com isto da violência diária, como acabaram com a transmissão dos incêndios, julgo que seria muito melhor para todos.
    Assustam-me as crianças e os que estamos a fazer delas.
    Um abraço.

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    1. Os meios de comunicação não param, até porque as pessoas consomem o que transmitem...Também me assustam as crianças, mas a verdade é que me assusta o mundo no geral. Atravessamos uma crise de valores e identidades gravíssima, que terá por certo sérias consequências no futuro. Oxalá esteja enganada...

      Um abraço para si também.

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  2. Um belo texto, CF, que nos convida a refletir sobre o rumo da nossa sociedade. A verdade é que nos é incutida constantemente a ideia que vivemos em perigo permanente. Os órgãos de comunicação constroem e amplificam diariamente esse perigo. Basta, por exemplo, ver os telejornais (que eu não vejo). O medo do perigo desdobra-se, multiplica-se e dá origem ao medo. E o medo autorreproduz-se, ganha ímpetos próprios e contamina as nossas ações diárias. Fermenta e produz uma violência latente em todos nós. A forma como nos relacionamos com o outro e com o mundo é a prova disso. A violência física, verbal, emocional tornou-se na linguagem mais comum, tendo-se banalizado. A violência estilizada e vista no pequeno ecrã, no doce conforto do sofá, garante elevadas audiências e oferece um cardápio variado de valores e códigos invertidos. Os “homens de cabeça gigantesca e olhos vazados” são digeridos por miúdos e graúdos, juntamente com o bife e as batatas fritas do jantar. E, no entanto, a difusão de imagens violentas, mesmo com uma genuína intenção de denúncia e justiça é, já por si, um ato de violência. É por isso que cada um de nós tem de fazer a sua parte e quebrar esta corrente. E acredite que podemos fazer muito à nossa pequena escala. Porque todos nós, novos e velhos, somos homens e mulheres do futuro. Eu acredito nisso.

    Um beijinho

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    1. Também acredito Miss Smile, mas temo ser detentora de uma visão um pouco mais pessimista do que a sua. Talvez porque profissionalmente me vejo a braços com situações complexas e invertidas, profundamente circunscritas à ausência de rumo que atravessamos. É claro que não acredito num fim à vista ou num colapso social, mas temo que a médio prazo a geração do meu filho atravesse um período difícil de humanizar... Hoje em dia o que impera é o poder, o lucro, o dinheiro, a ambição. Mas o problema não está aí. Está no efeito psicológico decorrente de toda essa motivação...

      Um beijinho Miss Smile.

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  3. Ontem, num jornal gratuito podia-se ler a seguinte 'noticia'.
    "Arabia Saudita
    Carrascos Contratam-se
    As autoridades da Arabia Saudita estao á procura de carrascos que terao a responsabilidade de executar, por decapitacao, os condenados à morte no país, onde este ano já foram executadas 85 pessoas. A oferta de trabalho, divulgada no site do Ministerio do Servico Público saudita, propoe oito vagas e nao requer qualificaçoes específicas ou experiência."
    ...mas está tudo louco?! Que mundo é este?! Nao sei se me doeu mais o facto em si, se o jornalista publicar esta noticia quase em molde "informacao aos desempregados"
    É um mundo assustador.....

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    1. Maria João, cada vez mais acho que o mundo está louco, sim. E a cada dia o meu desafio é sempre o mesmo e cada vez maior ( que paradoxo...), e trata o conseguir encarar este lugar com a calma e a serenidade que necessito para continuar. Hoje, por exemplo, em discussão existencial sobre a vida e a morte, perguntavam-me se acredito na finitude disto tudo. A minha resposta foi pronta; acredito, ou melhor, preciso de acreditar. Este mundo cansa e tem de ter um fim. Ninguém suporta esta loucura para a eternidade, nem corpo, nem espírito, nem coisa nenhuma. Julgo, eu, claro. Ou melhor, preciso eu para me situar... :)

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