© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 29 de junho de 2015

amélia decide morrer

Sinto-a muito trémula, oca, vazia, frágil. Escuto-lhe um respirar sustido por uma garganta que fecha como se o ar pudesse ficar cá do lado de fora, sufocando-a devagar. Imagino-a pequena, recém-nascida, enrolada num coeiro e aninhada no colo da mãe, uma senhora já velha e doente. O pai fez o que pôde a trabalhar muitas horas por dia, enquanto a moça cuidava da casa como gente grande. Hoje não sabe sê-lo. Hoje recorda-se antes do natal sem noite, do Domingo sem igreja, da sopa sem conduto, do colo apagado, uma vez por semana, na cama do hospital. Herdou-lhe cedo a personalidade. Bebeu-lha dos peitos, magros, espremidos mas fartos de leite, de ensinamentos, de leis e de mandamentos. Mulher que é mulher é dona de casa, não é dona do seu nariz. Mentalizou-se da regra, sentiu-a várias vezes na vida, conhece-lhe de cor os trejeitos, os passos, os modos com que deve obedecer, mesmo ao marido que a engana sem parar. Gostaria de poder ajudá-la, penso. Apetece-me, sempre que a sento em frente à mesinha que nos separa, erguer os meus punhos em gesto de revolta, sacudir-lhe as vistas e mostrar-lhe que na vida, a única coisa que nos pertence realmente somos nós mesmos, até que a morte nos separe. Não posso. Não ouso transgredir a técnica, preciso de acolher, não direccionar, pedem-me para ouvir e muito menos para falar. No final levanto-me, despeço-me, e sinto que por vezes o meu papel é segurar ao colo quem não consegue ser pessoa, até ao dia em que, por um golpe de luz, o destino possa quebrar. Não ouso fingir que não me atacam os dados da sorte. Não arrisco julgar que os dias nascem iguais para toda gente, nem que as noites servem sempre para dormir. O mundo pela harmonia da sustentabilidade, é um lugar desigual, e por isso não consigo deixar de considerar que a sorte, o azar e a circunstância mandam mais do que vontade, e que há muitas vidas terminadas porque a cultura mata, a mente acolhe e o corpo, submisso, deixa-a acontecer. 

O hábito cultural é a prova provada de que o que nos salva, nos pode aniquilar. O equilíbrio é a utopia que sabemos precisa, sem nunca se lá chegar. 

2 comentários:

  1. Conforme vou avançando, vou acreditando cada vez mais que as circunstâncias determinam muita coisa. A força de vontade está demasiado valorizada nos dias de hoje e, na minha opinião, só gera intolerância entre as pessoas.

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    1. Tem toda a razão... Nós somos nós e as circunstâncias. Não há qualquer dúvida disso...

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