© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 17 de junho de 2015

madame

Confesso que foi com inveja que lhe mirei os lenços bafientos estendidos sobre a mesa de madeira velha do quintal. Tinha-os ordenados um a um, pintados à mão, assinados por gurus da moda, pequenos, enormes, floridos, sóbrios, elegantes, garridos. Desdobrei cada um deles e esqueci-me das pulgas dos inúmeros gatos. Fiei-me no sangue ruim e não sei se estive certa, tenho umas manchas na pele nacaradas, inchadas, feias, que ficaram a descoberto mal me desembrulhei das obras de arte. Contou-me demoradamente a história de cada um deles, enquanto os felinos trepavam para cima de nós. Um, pintado à mão e com um galo de Barcelos, tinha o ar impossível do popular e da sofisticação. Os da Índia eram enormes e traziam uma história que não me quis confidenciar. Os do Egipto estavam rasgados, são velhos, mas fazem-na recordar do tempo em que a pele dela era um espelho claro, rasgado por duas bolas azuis que já olharam para todos os mares do mundo. Falou-me por fim de liberdade. Deu-ma de bandeja por palavrinhas doces, entregou-se a ela, foi boémia, foi feliz, foi solta, foi longe. Hoje a solidão da consequência deixa-lhe um amargo de boca difícil de degustar. Uma espécie de peito cheio e de vazio afectivo, uma plenitude nostálgica, uma dor que sabe bem. No final remata-me que foi muito bom ser livre. Nesse exacto instante embrulhou-se num lenço gigantesco, cobriu o cabelo e olhou para o sol.  

6 comentários:

  1. Nunca nos livramos das consequências. É tramado (e ao mesmo tempo fascinante) nunca sermos totalmente livres.

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    1. A liberdade completa é uma utopia na condição humana. Julgamos que a ambicionamos, mas esquecemos que só a queremos em doses moderadas. Se nos víssemos nessa condição, temo que enlouqueceríamos. Se é que existiríamos...

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  2. A liberdade não existe.
    Escrevi assim sobre a liberdade (é pequenino, gostava que lesse):

    A Liberdade é conseguirmos libertar os outros das nossas próprias prisões.
    Quando todos formos capazes da total permeabilidade na diferença, isto é, aceitar que os outros são e serão sempre diferentes de nós, aí, e só aí, poderemos pensar em Liberdade.
    Até lá temos uma grande barreira comum para vencer: a soberba de acharmos que só aos outros cabe a difícil tarefa de nos aceitarem como somos, já que o que somos é tão-somente aquilo que temos de mais perfeito.
    Só seremos livres quando permitirmos aos outros a sua própria liberdade.
    Somos pois, ainda, e sempre, todos prisioneiros uns dos outros.

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    1. Tem toda a razão do mundo Uva Passa. O Homem, ao ser social, não pode viver assombrado pelo mito da total liberdade. O caminho passará sempre, como refere, pelos outros. Houve tempos em que eu própria não aceitava esta teoria. Talvez por ainda não ter descoberto a nossa verdadeira essência. Daí em diante tornei-me mais tolerante para umas coisas e menos para outras. Percebo muito melhor a diferença, por exemplo. Mas tenho muito mais dificuldade em aceitar fundamentalismos e verdades absolutas...

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  3. A total liberdade, tal como a total felicidade, não existe. Existem, sim, momentos em que somos livres e/ou felizes.

    Boa noite, CF. :)

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    1. Isso Maria Eu. Os estados puros permanentes são uma impossibilidade...

      Boa tarde... :)

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