© Paulo Abreu e Lima

sábado, 12 de setembro de 2015

sinal da cruz

Uma avó minha dizia-me que existia uma cruz que me protegeria para sempre. Ofereceu-ma em oiro amarelo, pendurada num fio comprido que os nós tornavam um pouco mais curto, não fosse ficar escondido no meio das camisolas e perder a função. Mesmo ao lado dela estavam as figas, podia o diabo tecê-las, e a cruz não bastar para dar conta do recado. A minha mãe ainda ensaiou pendurar-lhe mais um dente, caído da minha boca. Dizia ela que me daria mais sorte, mas pareceu-me demais tanto amuleto a acrescentar ao anjo da pulseirinha do baptismo tardio, e declinei a oferta sem idade para tal. Felizmente o meu pai ouviu-me e salvou-me ao exagero, concordando com as minha fracas palavras de menina. Tenho tudo guardado a sete chaves, num cofre sem combinação, oferecido num Natal de um inverno frio e muito chuvoso. É de um vermelho ardente exageradamente bonito, feito de veludo e doirados, dividido em compartimentos acessíveis e outros mais recatados. O fio, a cruz e os amuletos estão na porta do fundo, nunca se sabe. A outra avó fazia-me crer na vida da terra e nos caminhos do Homem. Andou descalça tempo demais, e talvez por isso construiu uma couraça rugosa nos pés, que ela arrancava fatia a fatia, com uma faca de mato. Não podia cortar em demasia, poderia ferir o pé, e poderia ainda ser picada por um tojo pontiagudo e aguçado. Era necessária para o facalhão a precisão cirúrgica do bisturi, a fim de executar a tarefa na perfeição, nem muito corte, nem pouco desbaste. Nunca entendi a falta de fé desta segunda avó. Apregoava a terra e a dureza da vida enquanto dizia não crer na virgem, ao mesmo tempo que acartava garrafões de azeite para oferecer à Santa do monte que se via da estrada, e que nunca lhe fez nenhum milagre. Era de doidos ouvir isto, tal como era estranho vê-la caminhar com uma devoção escondida para rezar a nossa Senhora de Fátima, quando calhava, mesmo quando não era preciso. Nunca me deu uma cruz, mas ofereceu-me quase todos os lençóis da minha cama, e ensinou-me como ninguém a cortar as peles dos pés. Noutro dia exagerei e cortei-as demais. Calçar uns sapatos deveria ser o melhor remédio, mas ninguém me tira da ideia que deveria ter comprado mais uma cruz. Será porventura a incongruência da crença, ou eventualmente uma súbita precisão de fé? Não fica a questão, fica uma certeza: há casos, em que nem uma nem outra me bastam. Nem as duas juntas, quanto mais.

4 comentários:

  1. :) :) :) eu sei que a culpa é minha mas já tinha saudades de te ler :) Que bom texto. Que belas avós :)
    Beijinho

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  2. Minha querida Alda, que bom ter-te aqui... :)) As avós são do melhor do mundo... Sinto que sabes isso tão bem... :)

    Um beijinho para ti.

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  3. Também tenho recordações maravilhosas da minha Avó materna. Também nunca falava de religião - contrariamente aos meus pais que eram beatos - mas fartou-se de trabalhar na paróquia de S. Mamede quando o marido morreu e ela tinha apenas 65 anos. Era uma pessoa generosa, mas nunca beata nem rata de sacristia.
    Fui muito influenciada pela religião na adolescencia, jecfs e quejandos, adorava ter cruzes, ia a Fátima, e à Igreja, mas de repente tive uma epifania ao contrário e deixei de acreditar em tudo isso.....

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    1. As epifanias surgem em momentos de relevo. Podemos sempre pender para um dos lados, precisar dos dois, ou ficar à deriva com ambos. Dizem que é a vida... Bom Domingo para si.

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