© Paulo Abreu e Lima

sábado, 7 de novembro de 2015

Edgar, o bácoro

Não nutria especial interesse por extractos bancários chorudos, talões do multibanco gordos, cartões de crédito e débito bojudos e cheques com muitos zeros. Tudo aquilo cheirava-lhe vago, não palpável, uma espécie de fast money desenxabido, sem sal nem picante. Ou um gourmet servido em pratos gigantes e fundos com comida molecular, uma espuma de alheira aromatizada com três ervilhas, uma pitada de cominhos em cebola roxa caramelizada sobre um secreto de porco escondido. Nada disso, Edgar gostava de volumes imensos que não coubessem em carteiras. Apenas em malas, grandes malas com código de abertura. Quando as abria ensaiava uma liturgia. Derrengava-se para o seu interior com o seu pequeno e largo nariz de bácoro, onde pendia na pontinha uns grossos óculos de massa transparente, e começava a cheirar, de fora para dentro, as vis notas coloridas – chamava-lhes badalhocas, mas aqui todo o adjectivo é redundante. De olhos esbugalhados, julgava-se um homem das novas tecnologias: afastava-se e fotografava-as com o seu Nokia atado por fita-cola rançosa. Depois tocava-lhes de leve, uma e duas vezes, para sentir aquela energia. Quais cheques, extractos, talões do multibanco e cartões? Dinheiro era aquilo. Notas desenhadas, coloridas, com marcas de água, traços de prata, selos, carimbos, assinaturas e números de série. Feito o reconhecimento, começava a retirar os maços um por um e a contar as notas com o seu polegar pequeno de falangeta larga, uma por uma.
Um dia presenciei aquele transe calado. Eram muitos maços de notas de vinte – não gostava das de maior valor, demoravam menos tempo a enumerar. Depois da fotografia e do passar das mãos, começou ávida e furiosamente a tarefa. Manejava as notas com a destreza dum baralhador profissional de cartas numa rapidez atónita. Por cada dez notas contadas levava o dedo à boca para humedecer; depois das trinta começava, de boca aberta, a salivar até pingar sobre as mesmas. Aí, grunhia: molhadinhas são mais fáceis de descolar, eheh. Virava-se para o canto do escritório para ninguém ver. O cuspo saía em tal abundância que parecia a bica de uma fonte inquinada e, à medida que o tempo passava e passava, misturavam-se-lhe eructações e sucos estomacais. Só podia. Pelo cheiro e pelas notas a esfarelar. Quando acabou de contar o último maço, umas boas duas horas depois, olhei: aquilo parecia um rolo de papel higiénico que tinha caído numa sanita cheia de urina ainda por vazar. Perfeito, com este maço pago o salário do mês de Julho aos operários – vociferou.

2 comentários:

  1. Comecei a ler e pensei que o Edgar era um tipo divertido. Mas à medida que avancei no texto o Edgar passou a ser um tipo nojento e que eu gostaria de ver muito longe de mim :(
    Espero que esse dia em que o Paulo o observou seja na realidade pura fantasia. :)
    Mas a verdade, infelizmente, é que neste mundo há muitos Edgares.

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    1. :)) A ideia foi mesmo essa, Maria João.

      Ainda para mais, não é ficção. Já vi muitos Edgares nesta vida. Não são consumidores, são adoradores de dinheiro, ou melhor, recolectores de notas. Por norma não são higiénicos e transpiram muito de ansiedade por as contar e manusear. São bácoros...

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