© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 25 de junho de 2014

vontade

Abro as janelas que dão para a rotunda e olho o bulício da cidade. Preparo-me para respirar, o atraso é suficiente, sei de antemão. Não fecho os olhos, preciso de treinar a leveza no seio da confusão. Fico uns minutos a respirar o ar fresco da tarde, espreito as nuvens ao longe, imagino vidas que passam dentro dos carros que correm apressados, as horas, as malditas das horas chegam sempre cedo demais. Esqueço por instantes o que faço ali. Reservo-me o direito ao egoísmo, encontro-me comigo mesma, observo o meu âmago e espreito-o até ao último traço decifrável a olho nu. Nos meandros do meu ensaio entra um médico apressado. Esqueceu um livro de receitas e precisa delas ao domicilio,  - sabe como é, dá um jeitão a excepção, quase tanto como a falência informática, a vida é feita de escapes, falências, remedeios e outras adaptações. Aceno-lhe que sim senhor, desejo-lhe um bom resto de dia, volto para a minha realidade e achei por bem tentar de novo o observatório, mas perdi-me. Dei voltas, reviravoltas, procurei a essência e o vazio externo, mas perdi-me à séria, ó que diabo. Fechei a janela e solicitei o silêncio, mas a criança entrou e sorriu para mim. -Trouxeste o lego, pergunta-me? - Claro que sim. - Vamos então brincar?, insiste - Vamos, afirmo, e sentei-me no chão, quase igual a ela. - Um dia vou crescer e ser grande, disse-me. E aí já posso ter tudo o que eu quiser. Escutei-a com atenção e concordei, a contingência é a supremacia da terapia, jamais deveremos defraudar expectativas e menos, muito menos, as de uma criança que cresce a acreditar. Por momentos, por escassos momentos, quis roubar-lhe a identidade. Quis sentir o valor da esperança, a abrangência da eternidade, a crença no colo, o poder da vontade. Mas prosseguimos, tranquilas, cada uma em seu lugar.

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