© Paulo Abreu e Lima

sábado, 27 de dezembro de 2014

afectos

Hesito entre falar do trivial ou do excepcional, do banal ou do importante, das coisas pequenas ou das coisas grandes. Há quem diga que a época pede grandes balanços, eu, pela minha parte, contento-me com pequenas conquistas, quotidianos, rotinas que me marcam com um ferro quente. Os sabonetes e as meias que me ofereceram no Natal, por exemplo, são motivo de análise profunda, de deambulação interna intensiva, de afeição e gratidão. Não preciso que o sapato do pai Natal traga o que não me faz falta, e um sinal de ternura cabe perfeitamente no conforto de uma peúga, no odor floral de um sabonete, na simplicidade de um sorriso por si só, desprovido de bens ou adornos à superfície. Também tenho estado especialmente atenta aos sinas de contentamento. A felicidade afigura-se como uma grandeza um tanto ou quanto paradoxal, contrária ao sentido de evolução da humanidade. Tendemos a progredir em diversos sentidos e a apreciar cada vez menos o que nos faz realmente bem, chamaria a este fenómeno qualquer coisa como ignorância erudita, mas não sei se será verdadeiramente adequado. O Papa Francisco, esse sim, parece-me um verdadeiro erudito, e não posso deixar de falar nele neste final de ano. A igreja carecia de uma revolução, e sinto cada vez mais que está no caminho de a alcançar. Nunca nenhum outro me apelou tanto ao amor como este, e o mundo, este lugar empedernido, carece estupidamente de amor. Felizmente consigo vê-lo. Consigo cheirá-lo nas minhas mãos quando agarro no meu filho, consigo olhá-lo no júbilo do meu sobrinho quando encontra o colo da mãe, consigo apalpá-lo quando fecho os olhos e o construo internamente numa dimensão alternativa, ainda ontem, por exemplo, na adega morta da minha casa. E sossego, fico muito sossegada quando falo assim e tudo me parece mais fácil do que é na realidade. Acabo por aninhar-me no encosto desta visão nublada, por enrolar-me como um animal adormecido, por beber com avidez uma água benta que não me abençoa, não consigo proteger-me por muito tempo com esta ilusão fantasiosa. A verdade é que não há nada mais fácil de desencadear no mundo do que o ódio, nem há tiro mais certeiro do que o do rancor. É fácil de perceber, parece-me, para amar é preciso trabalhar e ir em direcção, tarefa penosa, árdua, difícil. Tudo o resto é no mínimo mais ligeiro, mais individual, eventualmente muito mais satisfatório. Não me espanta, nem sequer me decepciona. A preocupação que me deixa é também uma caso secundário. O que me inquieta, o que verdadeiramente me incomoda, é o futuro do mundo entregue à natureza humana, pouco hábil nos afectos. Deixaremos à geração dos nossos filhos um osso duríssimo de roer, não esquecendo que os cientistas dizem que daqui a nada teremos menos um dente.    

4 comentários:

  1. É sempre tão certeira. Um bom ano para si.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Igualmente Mãe Sabichona. Desejo-lhe um ano com muito amor...

      Eliminar
  2. Coitados...nem com os dentes todos quanto mais com menos um. 😊
    Aproveito para desejar a si e ao Paulo um novo ano com Muito Amor.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não haverá dentes que os salvem, Maria João... :)
      Muito obrigada. Igualmente para si...

      Eliminar