© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

quem vê caras não vê corações

Quem vê caras não vê corações, dizem os antigos, dizem as pessoas que sabem, dizemos nós no dia a dia, quando encontramos um engano envolvido por uma expressão branda. Não sei se concordo. Cada vez mais consigo ler a ternura residente nos gestos que me cercam, a astúcia manifesta nos olhos que me rodeiam, o carinho nos sorrisos ternos, e a velhacaria, a maldita, nas palavras que gritam mais alto do que eu consigo decifrar. Também me engano, é um facto. Ainda me iludo, por vezes ainda adormeço, mas a verdade é que a cada dia confio mais nos meus sentidos, com provas dadas e revalidadas de que os equívocos são em dose menor. O senhor do jardim, por exemplo, nunca me enganou. Desde cedo que a rudeza que emana não me cabe perto da resistência, mas encaixa-se perfeitamente ao lado da má educação. A irmã Rosa, a professora que gritava nas aulas de religião e moral, um outro exemplo, acabou por confessar-me ter ido para freira por instabilidade emocional, e nunca por vocação. E eu sabia, eu juro que já sabia. Depois surge-me a moça que passeia demoradamente o pai nas estradas da rua, velho e debilitado. É uma delicadeza que ampara tudo quanto a solicita, há muito que lhe li esse traço na simplicidade do rosto e na maciez da expressão. Mas foi o tempo, admiro-o, pois foi com ele que aprimorei toda esta minha confiança. Antes, tinha medo, assustava-me acreditar na minha percepção, quando o mundo em redor insistia em retumbar contrários. Hoje sinto-me muito, e raramente me arrependo disso. Aí residirá eventualmente uma arte, ou um trabalho árduo de desobrigação ética. Seja que nome for aprecio, e pretendo expandir ao longo do próximo ano e ao longo de toda a minha vida. É mais ou menos uma lógica sujeita à mãe natureza, um instinto, um respeito a mim. E ao outro, em consequência.

2 comentários:

  1. Ahh que belas palavras se produzem por aqui, e que mão para a escrita...
    Pois sim, pois sim. Dizem os antigos muitas e belas cousas, mas dizem sobretudo que, quem tem o dom de escrever, tem dentro, e fora, e por todo o lado, o dom de (a)perceber, ou seja, de conhecer o 'ser' antes de este parecer. Antes de se transformar socialmente, antes da máscara.
    Só assim se escrevem obras-primas. O resto são novelas.
    Eu cá nunca me engano.

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    1. Obrigada pela simpatia Uva Passa. O dom de conhecer o outro tem que se lhe diga. Até porque, primeiro que tudo, implica uma aceitação incondicional de nós próprios...

      :) Um beijinho para si.

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