© Paulo Abreu e Lima

sábado, 16 de maio de 2015

aldeia

Perdera-se mais depressa do que um baldinho de areia na fúria do mar. Varreu-se por entre uma chuva de espadas que lhe retalharam os pés, as mãos, os sulcos da pele e as reentrâncias das veias que lhe cortam o alimento vivo do local onde se pode morrer devagar. Houve um dia destes um bando de bactérias que se espalharam nos arredores de si. Mergulharam e procriaram, nasceram e multiplicaram-se, rodearam a vizinhança e engoliram o trigo que doirava ao sol. Ninguém lhe chegou a tempo do salvamento, nem foices, nem enxadas, nem mulheres, nem homens, nem cães, nem gatos. A aldeia toda junta uniu-se na eira e ficou a olhar. Nunca mais ninguém se esqueceu daquele dia, quando as saias dela se mirraram à luz da claridade e o lenço da cabeça se reduziu a um pó. A pouco e pouco a rua desertou. As almas recolheram às casas, as carroças encolheram e partiram os paus, os baldes da água pejados de girinos secaram de dó, as vacas murcharam e o pão endureceu. Quem se resguardou sobreviveu ao bafo quente do ar, dentro de casa, de cabeça baixa e de reza na boca. Logo nessa noite viveu um desejo numa cama de um quarto, num crescente fértil que vingou depressa, e passado um tempo havia nova gente que se via, que se ouvia, que se apalpava e se escutava. Quanto a ela deve ter ido para muito longe, dele não se conhece o poiso, mas desconfia-se muito que a matou. Ninguém sabe ao certo o que acontece quando acaba uma história de amor. Fica o cheiro fétido no ar, vê-se o peso dos corpos que se afastam, calcam-se as palavras turvas, afasta-se com os braços o grosso travo da dor. Uma história de amor nunca termina sem dor, o que termina sem dor é a paixão que se apaga numa gota morna de saliva. Não percebo, nunca percebi a passividade do mundo perante o amor, a história daquela aldeia estava acabada. Só quem lá morava não sabia disso, respirou fundo e continuou.

4 comentários:

  1. Bonita história,gostei imenso!!

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    1. Melguinha, não a acho bonita. Será apenas, eventualmente, real...

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  2. Impressionou-me. Não sei o que dizer.

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    1. Se calhar, porque conseguiu sentir um bocadinho...

      Bom fim-de-semana, Virgínia.

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