© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

imaginação

Sabe pela fonte mais segura do mundo que necessita de tal cuidado, mas especialmente hoje que pensa nisso, descobre que nunca o teve. Na realidade deveria concluir, e por tal facto, que não sabe ao certo o que quer, não conhece a falta que lhe faz o que nunca teve, ou o porquê do desejo do que jamais experimentou. Nas horas vagas pensou no assunto. Não deveria admiti-lo, mas o certo é que pensou também nas horas ocupadas, aquelas que lhe são pagas, e em que a sua cabeça deveria estar empenhada em descobrir soluções empresariais, campanhas proveitosas, receitas milagrosas, mas a dela não. Dedicou quase todos os minutos do dia a tentar perceber o porquê da falta do que não sabe ao certo ser. Fez a retrospectiva total e parou no casamento. Aquele onde nunca conheceu o sabor que ainda procura, a marca da tradição, o colo que vigora nos livros e na religião, aquele que desdenhamos mas que tanto procuramos, como se tudo quanto se critica nos devesse chegar de forma camuflada, sem ninguém ver, dado que é vergonha uma mulher assumir que necessita que cuidem dela, nos dias do feminismo flagrante. Não se perdeu por ali e foi vida fora. 

Deambulou por terrenos solitários e partilhados, deu a volta pelo destino, arriscou sem medo e sem receio de parar os momentos criteriosos onde seria suposto encontrar o cheiro do que procura, e sentiu-o algumas vezes, muito poucas, mas conclui ser dali que lhe nasceu a real falta, só pode ser dali. Em redor, o mesmo de sempre. As pessoas para cuidar, os problemas por resolver, a vida para correr, os dias para trabalhar, os momentos fracos para vencer, o colo para dar, os tapetes a escorregarem por baixo dos pés, os joelhos a levantar, o queixume a morrer, o fio da navalha a cortar, a voz a falhar. Não se apercebeu em concreto do que lhe sucedia até me bater à porta. Não catalogou coisa nenhuma até se sentar no banco de uma secretária que conhece de cor o que são mãos trémulas de cansaço, olhares que desviam, gestos que denunciam, expressões que defendem o que não existe: - deve ser culpa minha, devo ser eu. Só isso justifica que funcione sempre tudo igual. Mas sabe, foi ontem e estive mesmo para desistir. A minha colega de trabalho, sabe, um amor de pessoa, disse-me que se entregou ao projecto com unhas, dentes e convicção. Falhou férias, esqueceu noites, ignorou refeições, o que lhe valeu foi a televisão que o marido, em cuidados com ela, lhe comprou, não fosse a pobre mirrar a visão num mísero ecrã de pc vulgar. Olhe, aquilo atingiu-me no peito. Olhei para ela e fiquei na ânsia da escolha de quem assassinar em reacção. Se a ela, alvo de protecção, se ao marido dela, capaz de a cuidar, se a mim mesma, nada merecedora de receber. Durante alguns minutos, tenho de lhe confessar, estive a matá-la por dentro. Primeiro arranquei-lhe as goelas com as minhas mãos. Depois, devagarinho, tirei-lhe as unhas uma a uma, limpei-lhe o sangue com um lenço de assoar e prossegui caminhos, não sem antes lhe perguntar se doía muito. Ela gemeu em aflição, claro, mas não tive pena nenhuma, culpa que me assaltasse ou arrependimento que me parasse. Deixei-a morrer aos poucos na minha imaginação, precisava mesmo que ficasse morta, sem respiração, sem reacção, sem sossego ou protecção. Nunca ninguém se preocupou com a minha visão, sabe o que é isso? - Consigo imaginar ser muito difícil, respondo numa estranha sintonia. Não sabe, sei que não sabe, é claro que não sabe, e por isso nunca na vida lhe apeteceu matar alguém na imaginação. 

Continuei a anuir com a cabeça, indo ao seu encontro. Mostrando com o meu gesto que nunca na vida matei alguém na minha imaginação.

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