© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Adeus em Atenas


Clara era escura. Não da exacta cor de ébano, mas da tonalidade com que gostamos de sair do estio: suavemente acobreada. Pele lisa, macia, perfumada, sem marcas nem protuberâncias. Olhos vivos, brilhantes e amendoados. Esguia e atlética, não traíra generosas curvas africanas. Nascera em Príncipe, mas cedo foi para Santiago e, mais tarde, para a Holanda. Acabei por conhecê-la em Bremen, Alemanha. Ela e a sua passada larga, desconfiada e acelerada. Falava fluente alemão, sueco e holandês e, solícita, sem saber ao certo porquê, ficou minha intérprete nos delicatessens e pubs mais castiços das ruelas de Schnoor.

Desconcertante, falava sobre tudo. Desde as put and call options nos mercados de commodities, aos míticos e majestáticos veados escoceses de doze hastes; desde a receita de pudim de leite moça que a avô lhe ensinara, à capacidade de carga dos melhores contentores de 40 pés; desde a influência do dadaísmo na literatura e nas artes plásticas, à importância da sacarose de beterraba. Encontrávamo-nos todos os dias às seis e meia, já ao anoitecer. Todos os dias. De segunda a domingo. Mais facilmente perderia o cartão do quarto single do hotel onde residia, do que aquelas seis e meia da tarde com ela; mais rapidamente esqueceria onde estava, por quem ia e ao que vinha, do que aqueles momentos de cumplicidade e devoção. Pontualmente às seis e meia no Scusi.


Até um dia, um único dia, uma terça-feira, em que não me apareceu. No dia seguinte também não. No seguinte ao seguinte, não e não. Nunca mais a vi. Nem desconfiada, nem acelerada, nem passada, nem nada!

Anos mais tarde apareceu no ecrã do meu televisor, na cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Atenas, gesticulando um evasivo Adeus ao público esfuziante do estádio. Desliguei a televisão e, estranho, inalei um desenxabido Adeus também.

11 comentários:

  1. A deusa de Atenas só após o adeus lhe saiu da mente.
    Mas o silêncio da partida ainda ecoa ai dentro.
    Um abraço

    Lucia

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  2. Meu caro Paulo
    Às vezes acontecem-nos coisas surpreendentes, como os encontros inesperados.
    Começa-se tranquilamente por uma conversa. Uma só. Que, uma noite, num acaso do silêncio, salta ao nosso consciente. E, por algo que desconhecemos, os nossos passos voltam a encaminhar-se na mesma direcção. Um dia, mais outro e tantos mais que já nem sabemos porque vamos. Nem por quem vamos. Apenas vamos. Numa expectativa que desconhecemos.
    Quando, de repente, os passos se perdem, percebemos. Ou não. Então apenas sentimos que algo nos falta... talvez, dizer adeus!

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  3. Lucia Luz,

    É isso aí, faltava um "Adeus"! Mas olhe que por aqui, o "silêncio da partida" deixou precisamente de ecoar no silêncio, ou na ausência, do mesmo Adeus.

    Grato pela visita, estou explorando seu Cantinho!
    Abraço,
    Paulo

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  4. Caríssima Helena,

    Sabe de uma coisa? Não desmerecendo outros, gosto muito, mas mesmo muito, deste seu outro registo. Instropectivo, quase poético, mas desconcertantemente pragmático. Quase definitivo. Quase, porque nunca fecha nenhuma porta. Gosto mesmo!
    Beijinhos,
    Paulo

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  5. Mas o meu amigo tem este estilo nos meus três outros blogues: www.enadaoventolevou.blogspot.com
    www.duas-ou-tres-coisas-que-já-sei.blogspot.com
    duasoutrescoisasquejugosaberjulgosaber.blogspot.com
    abreijo

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  6. Olhe, Helena, ainda bem que refere esses seus magníficos blogues, porque pensei que dois dos seus livros que tenho - "Coisas do coração" e "Coisas que sei... ou julgo saber" - fossem, em parte, resultado desses blogues. Estou errado...?

    Estou. Porque se por um lado, o "E nada o vento levou" parece suspenso, os outros dois de poesia estão de vento em poupa! Novos livros? :)

    Abreijo

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  7. São as personagens que entram e partem, repentinamente, para construir, quem sabe, os passos errantes mas prazenteiros da memória.

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  8. Cara Filipa,

    «passos errantes mas prazenteiros da memória» - na mouche! Se bem que, até pode não parecer, mas prefiro viver o insuspeito presente. Já lhe disse que a descoberta do seu blogue foi Vera surpresa e radiante Jardim...? :)

    Beijinho virtual,
    P.

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  9. Paulo
    Estão todos activos. Ainda hoje escrevi um conto.

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  10. Helena, logo vou já lá ver (a-do-ro os seus contos, um dia explico melhor porquê), agora vou para mais um jantar de "negócios". Ainda não percebi por que razão em Portugal é sempre ao jantar, se até em Madrid já se fazem brunchs nova-iorquinos... não hei-de depois ficar com barriguinha! Jantar é para desanuviar ou comemorar bons acordos para ambas as partes, enfim, até logo.

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