© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Fiapos em série



Parece que se chamava Natália e tinha trinta e poucos anos. Durante o dia, enquanto o marido trabalhava no centro de estudos do atuariado da seguradora, entretinha-se com as lides domésticas dando ordens à mulher-a-dias, ou cozinhando, ela própria, iguarias sofisticadas com que presenteava ao jantar o mais-que-tudo quase todas as noites. Também lia muito Amis – Kingsley e Martin –, poesia e prosa. Vladimir Nabokov e Saul Bellow completavam o inner circle literário que um mestrado em Línguas e Literaturas Contemporâneas lhe compunha espessura para superior análise e aprofundamento. De resto, saía muito pouco. Recebia a companhia diária de uma grande amiga de adolescência, também de letras. Diziam que Natália tinha quase um temor reverencial por ela, ou por aquilo que ela lhe contava e impunha. Lembravam experiências verdadeiramente esfuziantes que tanto a desassossegavam como a alardeavam. Coisas do passado longínquo lá muito delas.

Um dia discutiram forte e feio. A amiga tinha posto em causa a sua aptidão temerária em relação ao marido, saindo de casa sem abrir a porta. Natália foi atrás dela e saltou pela janela. Do sétimo andar. À polícia judiciária, o marido José jurou que nunca tinha conhecido a famosa amiga, a tal que os vizinhos só conheciam pela voz cândida da defunta que, afinal, tinha esquecido de tomar por três vezes consecutivas os doze comprimidos diários deixados carinhosamente todas as manhãs na caixinha laranja do tabuleiro do pequeno-almoço.

No mesmo prédio da Columbano, Antónia levantava-se todos os dias às seis da manhã para lavar escadas, bater tapetes e recolher os caixotes do lixo. Era a mais eficiente e dedicada porteira da avenida, testemunhava embevecido o senhor Manel, dono da esquecida sapataria da cave, a cada residente que o aguentava ouvir lá pelas oito quando abria portas, ou pelas sete da tarde quando baixava a protecção metálica. E era, sem dúvida: orgulhava-se do cargo – eu é que sou a porteira do condomínio (identificava-se assim aos estranhos)! – e, pronta, socorria os moradores mais idosos sempre que um dos elevadores teimava tropeçar entre o primeiro andar e o rés-do-chão. Quarentona, Antónia, conservava aquele andar sinuoso de quem ainda tinha curvas comprometidas de solteira, olhando inane para trás cada vez que lhe pareciam ciciar um piropo da calçada. À parte as teimosias do velhote do último andar que, em vão, se queixava de uns gritos agudos de dor que dizia que ouvia do lado, vindos da casa da porteira, Antónia era a melhor de todas elas, a maior delas, a mãe de todas as porteiras. Até que, uma semana depois do suicídio de Natália, Antónia jazeu no terraço das traseiras, adejada do último andar, do da Porteira.

Assembleia extraordinária do condomínio. Ponto único: Morte de dois moradores do prédio em menos de duas semanas.

Ante a presença em peso de todos os condóminos chocados, perplexos e assustados, um deles engendrou: grades em todas as fracções do prédio! Pesaroso e cabisbaixo, o senhor Manel vociferou: olhe, seu engenheiro, para que conste, a minha cave já tem grades e mais lhe adianto que um senhor do prédio da frente foi o primeiro que se atirou. Do sexto andar para o quintal, há menos de um mês atrás…

Tudo o que acabei de escrever não faria muito sentido – e continua a não fazer – se a médica amiga e vizinha de confiança dos meus pais, octogenária,  não escolhesse criteriosamente as três da madrugada de ontem para se impulsionar uns bons três metros e se abismar do último andar da Praça de Alvalade. A safada!

20 comentários:

  1. Dramático, não? Diria mesmo mais tenebroso.

    Espero que não seja inspirado pela "angústia do guarda-redes antes do penalti" ( operação).

    Paulo: há seis anos fui anestesiada por completo para me fazerem uma artroscopia ao joelho. Soube-me tão bem dormir profundamente e sem sonhos durante umas horas!
    Acordei calma, levantei-me e andei! Não, não foi milagre....


    Bjo

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  2. :) Com que então a CF gosta de humor negro...! Mas olhe que, à parte nomes, é tudo verdade. Tem alguma explicação para o contágio de suicídios em cadeia, todos pela janela...? Acho mesmo intrigante.

    (Ah, obrigado)

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  3. Não, Virgínia, não foi inspirado em cirurgias. Foi mesmo verdade. Tenebrosamente verdadeiro...

    Bjo

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  4. Estou profundamente chocada com o primeiro comentário.

    O meu pai suicidou-se com 45 anos da "mesma forma" descrita no post. Tinha 20 anos e, passadas duas décadas, ainda não consigo definir se é um acto de cobardia ou de coragem. Tem dias!!!

    A única certeza que tenho é que, na maioria das vezes, há o tal "contágio de suicídios em cadeia" como refere o Paulo porque dois colegas do meu pai também o fizeram (embora, de formas diferentes, mas todos num curto espaço de tempo).

    Respeito a vida, sou optimista por natureza e dou valor a coisas que a maioria das pessoas não dá. Para além de, todos os dias agradecer a Deus por estar viva, embora tenha passado a encarar a fé católica à minha maneira.

    À "CF" desejo do fundo do meu coração que NUNCA passe por tamanha dor e... "Desculpai-lhe Senhor"...

    Isabel BP

    P.S. Não acredito minimamente na psicologia como forma de terapia e, afinal, estou mesmo certa!

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  5. Caríssima Isabel BP,
    Parece-me que houve aqui um equívoco. Longe de mim falar pela CF, mas entendi o seu curto comentário da única forma que poderia ser entendido: a CF estava a elogiar o texto em si. Repare, caríssima Isabel BP, eu aligeirei o fenómeno, dando porventura mais ênfase a pequenos detalhes colatrais e acessórios. Longe de mim questionar a razão de tais ocorrências, até porque presenciei as três primeiras e vim ontem profundamente constritado do velório da senhora que conheço desde que nasci e era amiga da minha família. Infelizmente até sei de mais casos muito mais próximo do que - imagine! - possa julgar...

    De qualquer forma, fiquei muito sensibilizado com o que aqui partilhou.

    Aceite beijinhos meus,
    Paulo

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  6. Nem sou de me defender, que quem me interessa entendeu-me, mas enfim. Excelente, mesmo excelente, está de facto o texto. Quanto ao resto, e a quem me conhece, é fácil descortinar que se há coisa que respeito é a dor ou o sofrimento humano. Mas a quem quiser ter dúvidas, faça o favor, que todo o direito vos assiste. Já quanto aquela parte do desculpai-lhe Senhor, o caso fica mais fino. Se há alguém com direito a pedir desculpas sobre algum pecado que eu própria possa cometer, esse alguém sou eu mesma, portanto, faça o favor de pedir desculpa por si, que isso lhe deve bastar. Quanto a nós, caro Paulo, parece que está tudo em ordem, peço-lhe apenas desculpa pela confusão no seu espaço. Relativamente à explicação solicitada, deixemos para outra altura. Mais calma, que o assunto é digno e isso merece. Sorrisos para si, e obrigado.

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  7. Paulo
    Que sério e suicidário estais!
    Mas como diz a minha Maria, "ele há dias...".
    De greve, de suicídios, de amores, de enterros, enfim, de blogosfera e de contos.
    Gosto de o ler, mesmo com mortes desesperadas!

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  8. Estou como a Euronews em certos blocos informativos: 'no comments'.
    Ou melhor: é apenas ler e sentir.

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  9. Caro Paulo,

    Não era minha intenção criar este "alarido" no seu espaço, tanto mais que encaro os blogs como a casa do(s) seu(s) autor(s) e acredite que apreciei bastante o texto porque o tema foi tratado com dignidade e sentimento.

    Apresento as minhas sinceras desculpas.

    Isabel BP

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  10. Que horror!
    E que susto devem ter tomado.
    Beijinho amigo

    Lucia

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  11. Jesus, caríssima amiga Helena! Eu, um esmerado auto-censurador inato, que se optasse por não escrever com nome próprio, grilheta alguma me prendia imaginação alada, jamais desenharia caminho pela circunspecção suicidária. Como Alguém disse ao seu filho mais novo: nunca se democratizam tristezas nossas! :)
    Beijinho feliz,
    paulo

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  12. Guida,
    Quando calha a Euronews, toda ela, adormeço. Caladinho.
    :P

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  13. Caríssima Isabel BP,
    Esta casa é Vossa.
    Obrigado

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  14. LuciaLinda,

    Parece que o susto pega...
    :)
    beijinho
    paulo

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  15. Lendo de novo a tua história impressionaram-me dois pormenores: o facto de a primeira formada em letras como a minha filha não ter tomado os comprimidos durante tres dias e ter feito o que fez num acto de demência súbita. O outro é a coincidência com um acto desesperado duma prima ireita do eu ex- , que se atioru dum sexto andar dum hotel em Lisboa há uns 10 anos. Tinha sido munha colega na fac e estudava Letras também.

    A tua história fez-me mal, fiquei angustiada. Preferia que tivesse sido inventada.....

    Bjo

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  16. Virgínia,

    Segui a sua vontade e publiquei este seu comentário. Querida Amiga, ouça o fado acima da novíssima Cuca Roseta. Não é de agora que lhe acerto sem querer no peito. Mil desculpas.
    Beijinhos,
    Paulo

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  17. Solidão, desespero ...

    Uma barreira vazia entre nós e o amor dos outros, o amor da vida.
    O amor não nos chega e resta-nos o vazio, o silêncio, o nada !

    Como se mistura o amor com solidão e desespero? Ou não ...

    Historias tristes,
    texto escrito sabiamente deixando-nos um travo de doce desespero,
    comentários com amor...

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  18. Excelente texto! O absurdo, povoado de minudências e pitorescos.

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