© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

xeque-mate (ii)

[Tomei a liberdade e dei continuação a este excelente post da CF de "Uma Mulher não chora". Espero que ela não se importe...]

Um jogo que conhecia muito bem, desde as regras às excepções às mesmas, não fora ele próprio parte interessada na vida e adicto selecto das serendipidades próprias da noite, muito depois do sol-posto. De resto, mantinha a camisa de colarinhos brancos impecavelmente engomados, o papillon preto de cetim estreito e o colete com fivela justa atrás. Como estes, coleccionava uma quantidade significativa de fatos clássicos de corte por medida, pela mão de um alfaiate, artesão feroz ao metro e ao milímetro de todas as fazendas pretas e cinzas chegadas de Milão. Saíram apressados pelo tapete de asfalto cor de lontra molhada, entraram no automóvel antracite de retrovisores e pára-choques cromados e seguiram rua e noite fora. Permanecia o silêncio, a cadência de olhares e a névoa, agora azulada lá fora. A ampulheta seguia com eles na consola, ao lado de uma pequena garrafa de bolso Johnnie Walker Blue Label forrada a pele de crocodilo, mel. Perguntou-lhe: Vamos? Ela não desviou o queixo atrevido do pequeno espelho iluminado na pala frontal, enquanto deslizava o batom pelos lábios vivos e exuberantes. Mas volteou a ampulheta: era um Sim. Ele voltou a acelerar. As sombras e as luzes dos néones e dos tungsténios feéricos da cidade à noite passavam cada vez mais velozes pelo seu rosto, uma espécie de tela por onde parecia correr uma película de 35 milímetros. Decorridos dois quarteirões, já todo ele era um filme. Um road movie, stricto sensu. Ou um "Carteiro toca sempre duas vezes", em sentido lato. Chegados à avenida larga, as imagens no seu semblante surtiam mais nítidas, muito mais reveladoras dos seus desígnios. Perguntem aos transeuntes, aos poucos que o viram passar ao volante, o que avistavam através do vidro do carro. As cenas plasmadas no corpo dele eram as de um quarto com um bonito corpo de uma mulher estendida na cama, atada e açaimada, a espernear ainda vestida. Voltou a perguntar-lhe: Vamos? Ela sorriu de lado, divertida, acabara de ingerir um trago de JWBL, e virou novamente a ampulheta – outro Sim. Se nele as luzes notívagas projectavam fragmentos de thrillers intensos, nela desenhavam imagens bem delineadas mas suaves; se nele a vida corria trôpega a desoras, nela permanecia escorreita antetempo. Excepto quando juntos. Quando juntos, era ela que se algemava, se deitava amordaçada e gemia miudinho, num medley entre a agonia e o prazer, entre o fado e o samba. Volteava a ampulheta e apenas admitia dizer Sim. Juntos, era outra coisa, era ela própria toda um jogo que, como ele, nunca chegava ao fim.


12 comentários:

  1. Que foto espectacular do meu Marquês de Pombal...de repente, senti um calafrio na espinha, tantas vezes lá passei...anos e anos de liceu e faculdade, já depois de casada...foi lá que soube da revolução dos cravos às 8.30 da manhã de 25/4.

    Bjo

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    1. Menos mal, Amiga. Pior seria se apanhasse um calafrio vindo do texto adjacente :)

      Beijos,

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  2. Há casos assim.
    Há pessoas assim.
    Há noites assim.
    Vidas assim, anos assim, meses assim é que é mais difícil.
    Mas quando ocorre, é sim ao assim...

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    1. Quando ocorre é uma raridade... e ambos sabemos que esta é um dos poucos itens que definem preciosidade. E tudo quanto é precioso é assim e Sim :)

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  3. Que thriller mais frenetico este poste cheio de cores e luzes a noite, uma pitada de terror r outra grande erotica.Caramba estou como ele cheia de fimes na testa-:D Os postes das outras pessoas inspiram-no como um update da CF.. bonita imagem noturna!..pode continuar :|

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    1. Marta, porque já não é a primeira vez, deixe-me que lhe diga que não percebi patavina do que escreveu. Unhas muito compridas ou banho de imersão...?

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    2. Peco desculpa se nao me fiz entender mas nao tenho acentos neste meu etclado. E agora quem não entendeu fui eu: 'banho de imersao'?.. Se me censurar outra vez o comentario nunca mais volto aqui. Pois leia, caro P.A.L.: achei o seu poste frenetico, repleto de luzes e cores que me remetem para thrillers entre o terror e o erotico e gostei muito. Posso?.. ou sao as minhas unhas compridas que o incomodam, digamos assim.. XD

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    3. Afinal sempre lhe sobrou um til...
      Olhe, ficamos por aqui.
      Obrigado.

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  4. :)) Gosto destes dois e da forte sintonia, latente e manifesta. Eventualmente no final, deverias ter deixado o tradicional remate da semelhança, da vida real e da coincidência. Não sei, diz-me tu. É que a faltar qualquer coisa, só se for mesmo isso...

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    1. :)) Ok:

      "Qualquer semelhança entre este post e a realidade não é mera coincidência"

      Confirmas...? :)

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  5. Alegro-me de senti-lo feliz, Paulo, aparentemente reconciliado com a escrita e livre das "tormentas" a que se referia no post anterior. Agora é a minha vez de dizer: "bons amores!"

    Beijinhos amigos e meus :)*
    Isabel (Belinha para si ;)

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    1. Obrigado, Belinha. De facto, aquela imagem de uma nuvem negra sempre em cima da nossa cabeça pode ser problema nosso, mas não dos outros, porventura até quase sempre ensolarados. E sol e chuva não combinam, pelo menos para mim. Fiquemo-nos então pela noite e pelos seus mistérios.

      Beijinhos :)

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