© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

complexidades

O mundo é de centramentos e eu tenho dias. Há os que me apertam de manhã cedo, ainda na escada, numa correria que conheço ao pormenor do instintivo que já nem se pensa, só isso justifica as inúmeras coisas que faço sem saber, desligo sempre a luz, fecho sempre a água, tranco sempre a porta, e isto sem rigor obstinado da verificação patológica. Era o que mais me faltava. Não sei a cor dos vasos dos vizinhos, não decorei a marca dos carros, não conheço o que vestem e como se penteiam, a normalidade tem dessas coisas, e é por ela que eu reparo sempre na moça do primeiro andar, carregada de estilo e muito vestida de preto a lembrar o gótico quase morto, versão elegantíssima. Percebi entretanto que tatuou uma andorinha perto das mãos, que espreita por entre as camisolas de manga arregaçada e voa muito alto, mesmo à frente dos vizinhos do lado. Voar muito alto é um sonho de todos, e é por isso que eu aprecio a adolescência até ao infinito, interessa-me lá que ela mexa com os sistemas certinhos da adultez da sociedade. É dela em diante que se voa mais baixo, por ter de ser, por não mais se saber, também por querer. Troca-se com ligeireza a ambição pelo nexo, o vértice pela recta, o contingente pelo certo, e esquecemos, com o tempo esquecemos, de como é que se vê o mundo com olhos de cima. O problema maior surge quando queremos matar esses olhos nos que ainda sabem. Um acto vergonhoso, comparável a um homicídio complexo, que deveria como tal ser punido por lei. 

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