© Paulo Abreu e Lima

domingo, 24 de novembro de 2013

gelo



Desci a rua que ia directa ao elevador que me levaria ao cimo do sítio que eu queria. Descalcei-me, estava íngreme, a calçada tinha sido feita a preceito por calceteiros que a deixaram coladinha uma na outra, os pés das transeuntes tinham polido a pedra branca nos passos corridos em sapatinhos de salto. Segui num cuidado arrumado ao equilíbrio do fio que é a vida em cima do monte. O vento abanicava-me de um lado e do outro e eu fui-me firmando na manhã de Inverno frio (só de manhã deveremos subir muito alto). O elevador tinha um senhor que não falava a comandá-lo, não eram precisas palavras, o destino é sempre igual. Carregou no botão mal entrei e eu sentei-me e calcei os sapatos. Fiquei a sentir o meu corpo a subir devagar por entre as casas que se erguiam pequenas e sujas no enfiamento das ruas. Não havia gente (há dias vazios). Mal chegamos parei a olhar no mesmo tempo que o homem abria a porta para que eu saísse para o sítio sozinho, que apreciou companhia. Sentei-me e espreitei a cidade acolhida aos meus olhos, distantes de mim. Centrei-me nela e escutei-lhe os passos apressados que eu conheço ao pormenor da guitarra. Nisto talhou-me um vestido perfeito e florido (não há nada melhor para abrigar do frio corpos de mulher arrefecidos). Embrulhou-me depois numa coberta lisa que eu arredei e estendi aos pés. Sentei-me, precisei de sentir o chão que me agarrava. Não chegou e deitei-me, colei o nariz na calçada, os joelhos no pano ( era, era assim!). Levantei-me e ao fundo um barco passava no rio enquanto o fumo deixava um rasto ténue de trajecto passado, rumo ali ao lado. No cais as pessoas esperavam a embarcação que as levaria ao sítio escolhido. Pensei, ousei em descer rápido e em apanhá-lo (era muito tarde). Dei a volta e fugi do elevador que me faria um frio na barriga na descida acentuada, e do homem que não falava os amargos da boca velha. As escadas eram muito mais seguras e tinham sardinheiras. Cheguei no exacto momento em que a última pessoa saia no cais. Entrei e lá dentro espreitei a água que inundava o redor e me deixava tão segura de mim. Não foi preciso cheirá-la, era senti-la. O balanço intenso nunca mais sossegava, e eu, trémula, sentei-me num canto a esperar. Afaguei o corpo, estava muito frio, a manta tinha ficado no alto e estendida no chão. Gelei, é a vida ( shiuuu, o destino está aqui, já passa).

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