© Paulo Abreu e Lima

sábado, 14 de dezembro de 2013

harmonias

Considero a diferença uma razão principal à qual o mundo deve uma existência possível, tenho-lhe portanto um inestimável apreço. Estimo quem me expõe aos pormenores da harmonia, ainda que os mesmos possam surgir em pequenas minuciosidades triviais como a que encontro no cabeleireiro apressado que me cruza o caminho todos os dias, de cabelo azul e elevado, num perfeito amor ao céu. Também admiro os passos de Ofélia, a senhora que gosta a valer de saias curtinhas, uma permissão para que as pernas vejam o mundo com olhos de ver, a pele dela precisa desse humilde contacto. Não aprecio por aí além o dealer que habita certas portas, não porque tenha alguma questão pessoal contra ele, apenas porque me desconforta saber que usa a dependência em proveito próprio, sem qualquer mérito louvável na prática que executa. Às vezes creio que esta obrigação coerente se encontra abrigada senão no mundo, ao menos nos corpos jovens, presumidamente mais aptos pela abrangência que a vida atingiu neste século, capaz de nos levar da terra à lua, da paz à guerra, do mar à terra e da pobreza à riqueza, numa fracção de segundos. 

Influencio-me, claro que me influencio, perante um jovem exacto que aprecia o rigor da física e da química, e que me informa em primeira mão que o destino dele são as naves da NASA, os projectos de vencer no espaço, o ânimo de vestir um fato de astronauta e voar até Marte, quem sabe até para mais longe, não há limites reais aos catorze anos. Começa depois a contar-me que o único problema vai ser o programa de Português, as leituras abstractas da filosofia, as ideias subjectivas de Kant, o esforço físico necessário para que a bola de andebol lhe salte do corpo, nas aulas de desporto. Escuto-o com uma esmerada atenção, explico-lhe que a nossa aptidão é um critério cultivado em anos e anos a fio, ao longo do crescimento, reforço-lhe as diferenças, as tendências, as circunstâncias e as próprias limitações, e olho-o, à espera da concordância. Em vez disso, sacode o cabelo para trás, ajeita os óculos na pontinha do nariz, eleva-se da cadeira sem mexer o corpo e profere um satisfeito e grande: "As pessoas da subjectividade não fazem falta ao mundo. Viveríamos perfeitamente sem poesia." 

Sorri, não consegui deixar de sorrir, não pela declaração de ignorância dele, mas mais pela minha. É claro que vai haver para sempre gente que vive sem poesia, tal como haverá para sempre quem viva sem amor, sem generosidade, sem apreço e sem bondade. É exactamente desta harmonia que falo desde o inicio do texto, uma espécie de liberdade, um certo respeito por ela, uma consciencialização das pessoas tal e qual elas são. 

2 comentários:

  1. Aprender a aceitar as pessoas tal como elas são e admitir que há outras maneiras de se ser feliz para além da nossa é uma das coisas mais difíceis da vida. Porque mesmo quando nos afirmamos tolerantes nas palavras, e até às vezes nos actos, tendemos a achar lá bem no fundo, mesmo sem o admitir conscientemente, que nós é que estamos carregadinhos de razão, o que o nosso ponto de vista é que é o certo, e que os que pensam, sentem e vivem diferente de nós são sempre um bocadinho mais "parvos", ou menos felizes. Às vezes até no amor é difícil (mas bonito, também) aprender a gostar do outro como ele é e não como nós gostaríamos que ele fosse...
    Enfim, ponho-me para aqui a divagar... :)

    Um beijinho

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. E põe muito bem, Isabel. É complicadíssimo aceitar os outros tal e qual eles são, e a tendência é mesmo essa que refere: uma tolerância, alicerçada num sentimento de ligeira superioridade. Mas isso, e desde que com o devido respeito pelo próprio, também alicerça a nossa identidade, se é que me explico... :)

      Um beijinho para si também. Bom fim de semana.

      Eliminar