© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

cuidar

Emília dá a sopa. Emília dá a sopa, uma seringada de cada vez, porque ama o marido e porque é preciso dar a sopa. Emília é umas das muitas cuidadoras com quem pouco cuidado se teve, como se o dever de cuidar o outro e de amar além limites fosse a sua obrigação enquanto for gente. E é, é uma obrigação moral, familiar, social, acima de tudo sentimental, e nos sentimentos não há excessos nem demasias. O cuidador é o pico de uma pirâmide invertida. É aquele que suporta a sopa rala, a fralda suja, a falta de ar repentina e a má disposição impertinente de quem vê a vida a fugir, mais depressa do que a vontade expressa nos olhos que dizem tudo ao contrário da boca. A mentirosa... É o que enfrenta todo o sistema enquanto andar, é quem acompanha ao hospital, é quem acorda quando é preciso acordar, porque há frio, dores ou mau estar daqueles de moer. É também quem vai receber a reforma e quem dá as noticias do estado aos familiares, se os houver. É a confiança de quem está à distância de um telefonema, como se isso também fosse estar perto. É ainda aquele que sabe que não pode vergar, porque se quebrar não há mais ninguém para poder estar. Mas apesar do sentimento profundo, pode haver cansaço, tanto cansaço. Podem existir horas fortes de desespero, quando a fraqueza aparece ao lado do medo de que o amor de uma vida possa partir. E às vezes pode, e às vezes parte. Nunca interessam as noites acordadas, a obrigação cumprida, a rua que dá lugar à beira da cama, quando se tem amor de cuidar. Até parece que quem cuida deixa de viver e quase deve morre num tempo igual. E deve, e às vezes morre. Quando se ama em velho e doente vive-se de amor, mesmo que seja um amor cansado. O amor cansado, acreditem, é um dos mais puros dos amores. Não lhe chamem hábito, é feio, chamem-lhe companhia, cuidado, zelo e afecto. É por isto tudo que quem cuida precisa de cuidados: essencialmente porque sai de si só para se dar.

2 comentários:

  1. TERESA PERALTAjaneiro 07, 2014

    CF, quanta verdade coloca nestas palavras... Verdade, que pode ser comum, também, a outro tipo de relações.
    Bom Ano para si, com um abraço.

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    1. Desde que haja pureza de sentimento, pode sim, Teresa... E acredite que é bonito ver de perto este tipo de relações. Um bom ano para si também.

      Um abraço.

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