© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

o hábito


O hábito é um refúgio no qual repousamos a caminho de casa, quando sabemos que lá dentro nos espera o sempre igual. O inesperado adocica qualquer coisa a rotina que nos suporta, não fosse ele e o tédio faria com que a matemática tomasse conta de nós, cruzes canhoto. Ainda assim não descolamos da importância que a segurança tem para a nossa identidade, e quantas vezes não redimensionamos o universo só porque fora de nós surge uma outra realidade? Ou cá dentro, ou cá dentro e lá fora. Pela minha parte preciso assumidamente de quotidianos, como uma janela quase aberta de manhã, um perfume de flores na Primavera, um bâton forte no Inverno, um vestido leve no Verão. Ou uma cama lavada muitas, muitas vezes, um café todas as manhãs, uma mesa com cheiro a comida quente e substancial, todos os fins de semana do mundo.

Eckhart Tolle é um apologista inveterado do agora como a única realidade que temos. Quase mata o passado, guarda-o para os deprimidos, aquela fasquia da população que remói o que foi e não deveria ter sido, o que foi e não volta a ser, o que deveria ter acontecido e nunca aconteceu. Concordo com ele até certo ponto, não há verdade maior do que inutilidade prática do que já foi, mas não poderemos esquecer nuca o seu papel na construção do nosso eu e do nosso hábito. O futuro, pertença quase exclusiva dos ansiosos, ainda me sacode mais o espírito. Eventualmente porque me encaixo na faixa populacional que vive de anseios mal trabalhados, recalcados, rescaldados, entre outros adjectivos de carácter pouco abonatório em mente minimamente sã (toda a vida ouvir dizer que em casa de ferreiro os espetos são de pau). A verdade, e findas as explicações demasiadas, é que não alcanço focar o presente como a minha parca realidade. Não me consigo descolar do que me faz sentir em casa, desligar do que ambiciono, não imagino a corrida presente sem ponto de partida e pontos de chegada, locais que podem até mudar por forças anímicas do mundo, mas que serão sempre aqueles que eu quero. 

Esta minha leviandade de não crer em quem tão bem defende a lógica do presente, faz com que eu precise de uma rotina e de um caminho a seguir, dificulta-me a vida, claro está, exige de mim para além da lógica fácil do momento, mas não prescindo. O agora e para todos os efeitos, está sempre a morrer-me nas mãos: espalho-o tal e qual as migalhas da casa da bruxa e do chocolate, fica para trás, transforma-se em passado, diz-me para onde vou. Bem sei ser ele, esse agora, a constante realidade que me sustenta, mas nunca será só ele a única verdade que me guia.  

4 comentários:

  1. Texto muito bonito CF.
    Eu gostava muito de saber viver só com o agora. Confesso que às vezes tento ... mas não consigo!
    O passado são fantasmas, uns bons e outros maus, e o futuro muitas vezes são desilusões!

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    1. Obrigada Maria João. Sabe, honestamente acho que ninguém consegue. A teoria é boa e faz algum sentido. Nós é que somos demasiado complexos para caber nela...

      Um beijinho para si.

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  2. Concordo consigo, em particular com a última frase, que tão bem sintetiza a relação do agora com o antes e o depois que o sustentam. Olhar para o passado é bom, desde que não se fique preso a ele; o futuro é o que nos vai fazendo querer sempre querer mais e melhor. Desde que isso não nos impeça de viver em pleno o presente...

    Beijinho

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    1. Pois é Isabel, mas julgo ser exactamente aí que está o segredo. A ansiedade, por exemplo, um mal dos nossos dias, prende-nos ao futuro. E quase todos nós nos subjugamos a ela vezes de mais... Para não entrar nas prisões ao passado que refere, essas, quanto a mim, ainda mais prejudiciais...

      Um beijinho para si também.

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