© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

cuidado

Na minha secretária encontra-se uma flor morta por mim. Alguém achou por bem deixar-me um post it colado na pobre, onde se pode ler:  “ morri de tristeza, não cuidaram de mim”. Quem escreveu o dito por certo não pensou a fundo a exactidão de tão descomplicadas palavras. A frase é de construção simples, sem grandes artefactos ou pontuações, mas carregada de intenções. Toda a ciência pura está efectivamente no acto de cuidar. 

Costumava dizer em tom irónico que Silvino tinha morrido em vida, porque a vida o deixou. Morava intrometido num ramal de silvas bravias, frequentado por animalejos diversos que lhe comiam as paredes da casa, quase invisíveis. Atendia-me sempre por uma frincha da porta, não queria de forma alguma o meu cuidado (pleno de direitos). Era por lá que entrava a comida na marmita, que ficava guardada até que o corpo a engolisse, tinha de ser, não fosse mingar ao ponto da ida ao hospital ser uma inevitabilidade. Nunca tinha sido preciso… Houve porém o dia em que a doença chegou. A minha vontade era entrar e ficar ao lado, destemida dos bichos, ignorante que estava na força da vida, crente na da morte, que chegara ali. Que desconhecedora que eu estava. Teimei na abertura da porta, por trás de mim uns bombeiros amontoavam-se sem tempo para a paciência, o esgotamento do dia já era demais. Silvino abriu as portadas por minha insistência, e lá dentro tossia. Da porta para lá, inúmeros sacos enxovalhados, roupas velhas estofavam um chão de terra batida, ventos entravam pela janelinha que espiava o sol por entre o folhado. Num recanto da divisão interna, parei pasmada. Na estante da parede respiravam livros, obras primas da literatura, antologias poéticas e enciclopédias diversas, todos devidamente ordenados, limpos, luminosos. É a minha vida, dizia Silvino, não me levem daqui… 

Naquele dia consciencializei contingências. É claro que o cuidado externo é a vida, mas o nosso connosco também nos pode valer. E fazer viver.

(Infelizmente as flores são limitadas. À minha mercê ficam sempre dadas à sorte e a regas alheias que se concedam a comparecer. Nem sempre sucede, não compreendo como não prevêem a debilitação primária dos meus gestos. E assim secam em escadinha, as infelizes, sem palavras de atenção, nem escritas nem faladas. É demais, posso crer.)

2 comentários:

  1. Que belo texto e que saudades me deu de ti :) :)

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    1. Antígona, que bom ter-te por cá. E de volta ao teu espaço, claro, ainda que só de vez em quando... Volta de uma vez, anda. Daqui, também há saudades... :)))

      Um beijinho e bom fim de semana para ti.

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