© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Luzia

Lembro-me melhor de sorrisos do que dos choros, contrariando as estatísticas. É dos livros que as experiências más marcam a vida, mas eu é que sei (os livros ensinam-me muito, mas não deixo que me desmintam só porque sim). Havia um beijo e uma flor e eu nunca percebi muito bem porquê. Era o hábito, dizia, o ritual. E o Homem é animal de hábitos, claro. De manhã abria a janela, de noite fechava, sempre antes de dormir. Ao Domingo ia à missa, a seguir almoçava carne com bom vinho tinto, não se comia mais naquele dia. Os cães tratavam-se pela fresca e a rega fazia-se já tarde. Matavam-se coelhos uma vez por mês, os frangos era lá com ela. Saía-se sempre à segunda, levava-se a boina, vestia-se um casaco melhor. A professorinha Lurdes gostava muito de homens de bom porte, a outra, a enfermeira que alugava o quarto lá de casa, era atiradiça e não se incomodava com a camisa desfraldada nem com a lassidão do nó da gravata. Luzia espreitava pela fechadura, também estava habituada. Ia acenando com a cabeça para cima e para baixo, e raramente lhe escorriam lágrimas. Era do hábito. Quando escorriam, não sei o que se passava lá dentro, só sei que nessas alturas ela fugia. Mas voltava e depois tudo passava. Os dias corriam iguais, ao Domingo a missa, à noite a rega, uma vez por mês os coelhos, saídas à segunda, buracos de fechadura quando tinha de ser. Um certo dia estávamos sentadas debaixo da árvore onde o cão ladrava, como sempre. Chamava-se Camões, era cego de um olho. As ameixas eram doces e juntas inundávamos o colo de pingos que escorriam pelas mãos afora, em direcção à cambraia colorida do meu vestido primaveril. Não havia dia sem fruta, também. Ele chegou altivo e estendeu-lhe uma flor, o pinga amor, só falta o retrato para o posteridade, dizia. Luzia sorria enternecida e completamente pingada (era das ameixas). Deixa-te disso querido, eu faço anos todos os anos, e sorria mais ainda. Era Maio, houve de facto muitos, na primavera. Às vezes ia-se à praia comemorar, levava-se a cesta, comia-se no pinhal com manta e outras pessoas de bom porte e de bom nome. Sempre pessoas de bom porte e de bom nome. 

Agora sim, morreram os hábitos todos. E estarão felizes para sempre? No dia de hoje juraria que já não há flores, tal como não haverá em Maio, já na próxima Primavera. Amor mais firme sempre houve e sempre haverá, mas só de um dos lados. Nunca apreciei este tipo de dedicação, guardo antes as boas memórias, e por conseguinte já quase esqueci as lágrimas de Luzia. Só nunca cheguei a saber se algum dia as flores lhe deram felicidade.

2 comentários:

  1. Que texto tão bonito, escrito com tanta generosidade e harmonia....
    Obrigada!

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    1. :) Mãe preocupada, obrigada eu pela tua simpatia.

      Um grande abraço para ti.

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