© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

parece brasileira você...

Manuela tinha uns caracóis loiros e umas pernas altas. Vestia umas saias curtas e rodadas que deixavam a santa terrinha alvoraçada, ou não fora a moça jeitosa de corpo, de cara, de vestes e de calçado alto, o maior aliado de uma mulher. Nunca faltava à verdade, a sensata, nunca se imiscuía no engenho do engano, nunca se chafurdava no pecado da mentira, nem na pose, nem nas falas, nem nos gestos, nem nos amores. Amava de perdição um Zé de nome mas ninguém de condição, que a usava como um troféu conquistado numa luta de galos bem vencida, ganhas tu ou ganho eu. Ganhou ele, com uns olhos verdes de meter inveja, uma lábia triunfal, uma figura espadaúda e encorpada, apenas sustentada pelos encantos da sedução. Uma verdadeira mentira. Um dia passeávamos ambas pela estrada da aldeia, Verão quente, fim da tarde, a espampanante saia vermelha a contrastar com um meu humilde calção, o meu cabelito preso em rabichas, as minhas pernas engolidas pelo mulherão, eu uns cinco anos franganitos, ela uns vinte bem bonitos. Abeira-se uma viatura ligeira, uma cabeça de homem espreita, e o sorriso nasce de uma boca que lhe solta um atrevido - parece brasileira você. Sorrimos e prosseguimos, a saia esvoaçante, os caracóis desgrenhados, os passos envergonhados, eu, saltitante, repetindo o dito ao infinito, som que se alojou no meu corpo até nunca mais ter fim. 

Há pouco soube dela, encontrei-a numa celebração obrigatória, daquelas que reúnem numa igreja várias pessoas dos arredores. Os caracóis já morreram, as pernas ganharam tamanho, as saias desceram abaixo do joelho, os saltos mingaram até ao centímetro só, os olhos estão tristes porque o Zé Ninguém desapareceu com uma moça esbelta, o eterno sedutor. Perguntou-me por aquela tarde, inquiriu-me sobre o trajecto, sobre as vestes, sobre a expressão que se alojou no meu corpo e sobre o ar jovial dela, comido pela ilusão (a malvada esfomeada). É claro que me lembro, lembrar-me-ei sempre. A juventude da vida, nunca envelhece na nossa memória.

(Recordamos ainda, como não fazê-lo, o dia em que a verdade se alojou ainda mais no seu corpo. A condução fazia-se sem carta, tinham havido apenas lições. A guarda manda parar, e perante o riso dela e a minha pobre aflição, pergunta o que raio se passa ali. - Passa-se muito senhor guarda, sou eu que não tenho a carta, responde em gargalhada... Ora minha menina, siga, siga... Deixe-se de brincadeiras, e vá-se mas é embora... Prosseguimos claro, e a mim persegue-me ainda uma eterna e pertinente questão: terão sido os caracóis, as pernas, o riso ou a verdade? Por via das dúvidas e para quem possa, é usar em conjunção. Pelo sim, pelo não...)

4 comentários:

  1. Há sempre nas nossas vidas a lembrança de uma Manuela, chamada de outro nome. A minha era Balbina, hoje está velha, mas ao contrário da Manuela insiste em ser jovem...

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    1. A juventude é o tal estado de espírito. Se a Balbina é jovem, olhe que sorte que tem... :)

      Um abraço Helena

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  2. Há sempre algo para conjugar.
    Se não há caracois há cabelos esvoaçantes, se não há riso há sempre um olhar, e se não há as pernas perfeitas encobrimo-las de forma a ficar a dúvida...

    E se ser jovem é ter pouca idade, eu já não sou jovem. Mas lá que me sinto ... sinto!
    E com a vantagem de saber que a conjugação certa tem sempre que inlcuir a verdade.

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    1. Sempre Maria João, a verdade é sempre fundamental. E se ainda é jovem, ainda bem, há quem diga que é possível sê-lo a vida toda... E eu acredito... :)

      Um beijinho, bom fim de semana.

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