© Paulo Abreu e Lima

quarta-feira, 5 de março de 2014

artur e a rainha manuela

Diz quem lembra que eu tremia perante tão farta cabeleira, e a minha memória, prodigiosa, recorda qualquer coisa. Ou isso ou constrói, o fenomenal acontecimento que internamente se torna possível: ouvimos, edificamos, fazemos realidade no lugar inexistente da subjectividade ideada, o local onde tudo acontece. Mas a verdade verdadinha é que tenho presente os seus olhos verdes e ligeiramente aflitos, a minha vontade em trepar-lhe os caracóis, a minha mãe a segurar-me e eu a crescer, tão rápido quanto as minhas mãos conseguiam alcançar o farfalhudo e farto cabelo. A minha mãe conta ainda que se apaixonou de morte por Manuela, a irmã mais velha de um conjunto de três, aventureiras e muito precoces. Conta também a perdição confessada por meia dúzia de palavras proferidas amiúde por Artur, sabem lá, é só passar-lhe a mão no pêlo, sabia lá eu também, a abrangência da afirmação. O certo é que as mãos de Artur não foram bastantes para que ela sossegasse, soube-se num dia quente de Agosto, aquele em que Manuela resolveu entregar-se a António, seu futuro marido por uns bons anos, durante os quais Artur se ficou na espera. Dizem que para saber viver é preciso saber esperar. Dizem que a calma é amiga do povo, e que só através dela conseguimos alcançar prazeres e objectivos impossíveis de atingir num permanente cenário de expectativa acelerada, e eu acredito. 

Artur entendeu que a mulher que amava se aprimoraria com o tempo. Se lembraria das suas mãos atrevidas, dos seus caracóis loiros, dos seus olhos verdes e do seu bigode farto, e a verdade é que estava certo, pois passado um tempo Manuela voltou. Mais mulher, também mãe, e continuava acesa como uma candeia em noite de trovoada, ouvia dizer. Artur deu asas às calmas guardadas, transformou-as em actos e constituiu família, primeiro mais um, depois mais dois de uma assentada, e ficaram ao todo mais três. Nos tempos mortos esculpia pedra como ninguém, dedicando-se aos anjos e aos santos, ao pai e à mãe, às mulheres no geral, umas deusas que ele considerava muito acima do panorama terreno. Tudo isso até ao dia em que Manuela fugiu. Apaixonou-se por umas novas mãos, esqueceu caracóis e olhos da cor do mar, preferiu levar a prole para um local onde não se esculpia pedra noite adentro, com frio e com calor, sempre e sem ocasião. 

Foi a partir desse dia que Artur decidiu esculpir o pecado. Das mãos dele nascem agora verdadeiras obras de arte alusivas à mulher pecadora, que se expõe, que se despe, que se toca, que se dá. Continua com a nobreza da expressão impressa, a única e verdadeira forma de fazer chegar a quem vê, a grandeza do que se sente. Gosto de lhe admirar a obra, aprecio sentir a evolução da crença, admiro acima de tudo a carga afectiva que esculpe nas pedras, minuto a minuto, sem pressas e com vagar: a crença no amor, depois a crença na vida e no divino, logo a seguir a crença no pecado. Não ouso afiançar ordens criteriosas para o caminho percorrido, é lá com ele. Não ouso sequer acreditar naquela, cada um tem a sua, é com cada qual. Gosto simplesmente de apreciar a expressão estampada nas peças que cria. E a calma na espera e na feitura, uma arte muito mais nobre do que a perfeição ambicionada.

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