© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 6 de março de 2014

o mundo às escondidas

Conheço perfeitamente a angústia que sente uma criança diagnosticada com hiperactividade. Sei ponto por ponto a inquietude que a desassossega quando o mundo lhe foge com as respostas sensatas, quando a regra exige que se sente, quando o procedimento, impaciente, lhe tenta agarrar as mãos. Nessas alturas ataca-se com o milagre anti agitação. Ministra-se de manhã cedo antes da escola abrir, vigia-se de tarde, à noite qualquer outra substância há-de permitir ao mundo dormir sossegado (a ele, essencialmente ao mundo). Durante esse tempo é possível viver perto. A criança estagna, a professora ensina, os pais trabalham, o mundo  acontece no seu devido lugar (qual é o devido lugar do mundo?). Quando mais nada se faz, e já no desmame, encontramos o inverso assistido: a criança aparece enquanto gira, desordenada, em busca do baú perdido. O baú perdido não é um fármaco, e nós adultos sabemos bem disso. O baú perdido é um local que não existe na vida de muitas crianças pequenas e de muitas crianças grandes. Nós sabemos bem disso, mas por vezes esquecemos, quando o corpo se cansa e só quer saber dele. Não, não é egoísmo, é ter mais do que pensar. Só não podemos estranhar que elas (as crianças), tenham mais do que fazer. 

Por vezes estabeleço um paralelo com a ansiedade adulta, embora esta seja mal de outras origens, com variadíssimas curas e distintas soluções. Mas deveremos matá-la, ou deveremos senti-la? A dúvida assiste-me com elevada frequência, mas acabo muitas vezes por considerar melhor vivê-la. É claro que com tal provação a arrumação excessiva pode tomar-nos de assalto, o estado depressivo pode-se instalar de mansinho nas travessias do corpo, a obsessão pode tornar-se severa ao ponto da verificação constante ser uma impositiva ordem interna, e não uma mera necessidade externa. Ó diabo, temos um problema danado, mas ainda assim possível de reduzir. No mínimo significativamente mais fértil do que a alienação forçada, semi vida ou semi morte, um estrondo de pouca dura, nenhum proveito e falsa harmonia. Depois de se esgotar um sentir, é possível vencê-lo. Mas jamais iremos tão longe, ao ponto de nos escondermos.  

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