© Paulo Abreu e Lima

sábado, 5 de abril de 2014

amor tardio

Morreu devagarinho numa tarde fresca de Primavera. Despediu-se do mundo com as palavras certas, pediu os zelos pretendidos, elegeu vestes, adornos e fotografia que acompanharia o corpo. Não pretendia reduzi-lo a cinzas, jamais lhe praticaria tamanha atrocidade, nem mesmo depois de morto. A imagem do caixão a arder na Praça de São João remexia-lhe o estômago fraco, repugnava-lhe as entranhas, assustava-lhe a alma que viveria para sempre apoiada ao retrato que levava consigo. José Maria nunca a tinha a desposado. Deitara-lhe um olho em novo, uma mão furtiva pouco depois, tomara-a numa tarde de soalheiro na eira da terra, por entre o milho seco na tarde da desfolhada. Nessa noite os jovens e os menos jovens cantaram na monotonia do compasso, mas na hora do caldo verde, Maria sorria feliz. O moço partiu em ofício pouco depois, num dia de tempestade, nunca mais se viu. Ninguém da aldeia soube do sucedido, casou bem casada com a preferência da família e rumou para longe, honrou o nome e a vida, tocava piano como ninguém. 

No dia da morte socorreu-se de quem se abeirou dela e pediu auxílio: - salve-me desta vida, não posso mais com ela. Cole-me ao corpo o retrato de José Maria e deixe-nos secar juntos no cemitério. O vento abençoará na morte, o que em tempos me levou. Nunca mais o largarei. 

(Às vezes é preciso morrer para querer ser feliz.)

2 comentários:

  1. Caríssima colega, que conto mais terno e cândido. Delicioso!

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    1. Ora Paulo, que simpatia a tua... :)

      ( É um conto quase real. Certamente entre muitos outros do género que eu desconheço, contrariamente a este...)

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