© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 26 de maio de 2014

como as cerejas

A minha bisavó vendia cerejas. Sempre poucas caixas - dizia-me -, caixas a mais dá um ar de fartura, fartura a mais é demasia. Pousava a caixa na berma da estrada, retornava à pobre casinha que existia ao alto, sentava-se a tecer tapetes entrançados e levantava a vista quando alguém afrouxava, de carro ou apeado. - São frescas senhores. Só tenho essas, é de aproveitar. Rosalina de baptismo e Francisca por minha manifesta vontade (em virtude do casamento com Francisco), era mulher de negócios. Mais magra do que uma Olívia Palito, maior do que a aldeia toda junta, uma enormidade, um avanço na era dos homens, uma matriarca, uma autêntica excepção (não lhe herdei coisa nenhuma).

Vou falar delas, de mulheres. O facto insignificante de eu ser uma delas não me tira nem me dá direitos, permite-me unicamente uma visão ampla vista de um dos lados, o lado de cá, inserido num mundo de outros locais, a minha ideia do mundo, e ainda de outros géneros, o lado de lá.

A analogia à cereja, será por vós perdoada, julgo eu, caras senhoras. É claro que não se vendem mulheres em caixas de madeira, nem mesmo as mais maduras, as grandes, as que se denominam de gente da séria e da boa. É certo, tenho cá as minhas cismas, é um caso pertinente, passível de avaliação. E por isso não estimo superioridades ideadas, baseadas na idade e na suposta consistência e aparência, não aprecio postos apenas ligados aos anos passados, ao local onde se julgou chegar. Uma limitação minha, pode ser o facto. Mas é que surge-me ainda, não raras vezes e no seguimento, a questão da elegância. Um termo abrangente que pressupõe descrição, não há distinção sem o tal do saber estar e do saber ser, são requisitos subsequentes. Neste campo a noção de valor excessivo e de oferta excessiva, e voltando à cereja, pode ser um problema maior. Pode entregar a mulher a um burlesco absurdo e desapropriado, capaz de tolher bons sapatos de salto, saias travadinhas, pérolas verdadeiras e casacos de bom corte (para além das palavras caras misturadas com um jeito perspicaz e sapiente de gamar a gíria adolescente). As mulheres que julgam que é assim que são muito grandes, podem até estar enganadas. O tamanho da grandeza é coisa relativa, mais ou menos como o peso da beleza, o poder da fama, o valor do dinheiro e a força da atracção.

A inteligência emocional é neste seguimento uma verdadeira questão iminente, que invoca consideração. A excessiva auto-confiança, conjuntamente com a entrega em modo de urgência, sem despacho, requerimento, selo ou envelope fechado, pode ser um caso de análise, quase tão grave como a falta de estima própria. Pode fazer com que a abastança da pompa aniquile a genuinidade e o outro lado da vontade. Tenho para mim que não há no mundo maiores enganos do que este: o da presunção de se ser bom, fantasioso e construído, consciente, muito mais do que aspirante, do que se é e do que se pensa ser. Dá vontade de dizer a essas mulheres, que não se devem medir aos palmos. Nem aos anos, nem aos quilos, nem à formação académica ou a devaneios de altivez. Não há unidades de medida exacta quando se avalia gente, senhoras, há um conjunto de variáveis intervenientes, há quem dá e há quem recebe, há quem queira e há quem não queira, legitimamente e sem recurso a construção. O resto é pura imaginação.


Só para terminar, e voltando às cerejas: muita oferta baixa o preço e a vontade do comprador. Muito pregão e o povo não pega, não aprecia, cheira a barato, sabe a oferecimento à-toa, parece pouca procura e sobejo, sente-se congestão. No fundo o que se consegue, vai no sentido oposto ao pretendido (parece-me, claro, longe de mim querer ensinar).

10 comentários:

  1. Certo tudo o que diz, CF. Mas, pergunto: tudo isso não será válido também para os homens, pese embora todas as diferenças inerentes ao género?

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    1. Eventualmente Isabel. Mas eu aqui falo de mulheres...

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    2. Pronto, pronto... ;)

      Beijinho e... até um dia destes :)

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  2. Carla
    Belo texto. De quem sabe!
    Abraço

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    1. Obrigada Helena. Mas olhe que aqui sabe-se pouco. Observa-se é muito... :)

      Abraço para si também.

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  3. TERESA PERALTAmaio 27, 2014

    CF, concordo com tudo. Uma boa reflexão. E, com grande poder de observação!...:)
    Beijinho e até breve. :)

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  4. Ainda ontem conversava com a minha irmã sobre as nossas filhas, e as adolescentes ( ups!!! algumas adultas e não adolescentes! ) em geral. Tenho muito medo que um dia acordem e percebam que ... estão sozinhas!!!
    Que bem que lhes fazia ler, reler, e reler, e reler este seu texto!
    Posso estar errada, mas para mim tudo o que este texto fala se encaixa certinho nas mulheres, e com maior incidencia nas que hoje têm entre 16 e 35 anos ... embora ao longo do texto todas nós podemos ( devemos! ) "enfiar um pouco a carapuça" ;)
    Beijinho CF e mais uma vez parabéns

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    1. Maria João, obrigada. Enfiar a carapuça dói sempre um bocadinho. :) Sabe, acho que por vezes temos dificuldade em perceber certas fronteiras, e é exactamente aí que a subtileza deve falar mais alto... Mas isto é apenas um ponto de vista. Vale o que vale.. :))

      Beijinho para si.

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