© Paulo Abreu e Lima

sábado, 10 de maio de 2014

o amor não é higiénico. ponto.

Não consigo conceber uma creche onde os pais não podem entrar na sala das crianças, mas sei que elas existem, devidamente credenciadas, fiscalizadas e consideradas adequadas ao crescimento. O pressuposto consta ser o processo de higienização, e é nessa altura, em que uma barbaridade tão brutal se profere, que me apetece falar mal e depressa. Não me acontece muitas vezes, sou dada à educação, mas não devem por alma de coisa nenhuma colocar-me a fervilhar com propósitos inconvenientes, sob pena de eu mandar à fava a delicadeza mais ou menos com a mesma facilidade com que outros desdenham o afecto e a relação. 

Uma criança pequena ou uma criança grande precisa de saber onde está. Precisa de sentir que a mãe, o pai, a avó ou alguém dela a confia a outro alguém com segurança, um colo substituto para aquelas horas do dia em que a vida tem de continuar para além de tudo. Precisa de rebolar no chão onde ao fim do dia uns pés que são dela entram para a levar para casa, um lugar onde esses que são dela devem poder sentar-se, sorrir, abraçar e conversar. Nesse lugar deve haver gente com nome e com cara e com mãos que seguram mãos, tão constantes quanto a realidade permitir. Devem haver palavras cúmplices e olhos nos olhos, partilha de preocupações, babetes sujos e mochilas com os brinquedos lá de casa, tudo sem grande organização. A sala dos bebés, das crianças pequenas e das crianças grandes, não precisa de grande arrumação. Precisa de mantas no chão, de janelas abertas, de sorrisos rasgados e de identidade, individualidade, coração. 

Na hora da chegada e na hora da partida, todos deverão fazer parte do mesmo lugar, e um apartheid entre o mundo cá de dentro e o mundo lá de fora, dá lugar à desconfiança. De quem deixa, do lado de fora, e de quem fica, o mais importante de tudo, a criança que sabe que da porta para dentro não há lugar para pais (o que é isso de não haver lugar para pais?). Quando insistem comigo, lamento, mas fico ligeiramente arreliada, e como tal exijo usar o meu direito à indignação. Levanto o dedo, coisa que nem gosto, e ergo a voz ao cimo da convicção: afectos, meus senhores, são coisa suja. Não se olha a mãos ou a pés, nem a misturas impróprias de pais a mais. Não há muita gente na hora do mimo, da partida e da chegada, do crescimento e do amor. A confiança é feita de mãos nos cabelos, bocas nos pescoços, sorrisos nos corpos e esfreganços em qualquer lado que seja possível de agarrar no corpo da mãe, logo depois de se largar o corpo da educadora, e ainda em comunhão. Esquisitices em excesso são frescuras dignas de figurar no mundo dos adultos, aquele lugar onde muitas vezes as pessoas passam sem se ver, prosseguem sem falar e vivem sem abraçar.

No limiar da meta, tenho a dizer-vos, correríamos o risco de finar o mundo com este exagerado processo de evolução higienizada. Não deveria haver nada que nos valesse, na hora da concepção.  

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