© Paulo Abreu e Lima

domingo, 29 de junho de 2014

sorte

Usualmente enaltecemos a importância da saúde (importantíssima, como não enaltece-la?). Valorizamos a pertinência de dinheiro suficiente para que o corpo viva folgado neste mundo capitalista, referimos o trabalho, o ofício, como um meio directo para atingir o fim de uma realização muito além da profissional, mas pessoal, abrangente, plena. A família, é certo e sabido que a família ocupa o pódio das prioridades, as pessoas que nos pertencem, que constituem o nosso porto, com barcos, casas e tudo o resto. Os amigos, os amigos são aqueles que escolhemos e que nos completam plenamente, os que nos escutam nas tardes de inverno intenso, quando uma chuvada corrida levou tudo quanto viu (precisamos deles como do pão para a boca). Mas há mais coisas, inúmeras coisas das quais o mundo também precisa (mais ou menos como o sal no pão insípido do rei). No meu mundo, faz-me falta humor. Faz-me falta a ligeireza da vida, a relativização das adversidades, o sorriso pelo sorriso, a graça pelo próprio erro. Necessito de espíritos onde caibam enganos, onde nasçam gargalhadas, onde o rigor não se instale, ciente na sua (fraca) capacidade. O rigor excessivo assusta-me o corpo e o resto, vem de há muito, dos tempos do meu avô, que não sabia como sorrir. Vivia um dia de cada vez, sempre à mesma hora. Um litro de leite pela manhã, uma maçã perto do almoço, ao meio-dia estava à mesa. O copo do vinho era cheio, a banana da tarde sempre verde, e pelas seis, depois da sopa, recolhia o corpo até ao dia seguinte ( ainda sei de cor o cheiro da casa). Nunca se permitiu mudar escolhas, gostou sempre das mesmas pessoas, jamais ousou amar as que não devia amar (mas amava, só que por dentro). Quase mudou já muito velho e acabado. Transgrediu limites, mudou direcções, atalhou caminhos de alguma perdição, apaixonou-se por uma senhora branquinha e de olhos azuis. Disse-me uma vez em segredo, - vamos ver se eu tenho sorte com ela. Naquele dia, pareceu-me feliz (não cheguei a saber ao certo, se ela teve sorte com ele). 

( Não gosto que me confidenciem segredos maiores, peco sempre, indico sem reservas o caminho do coração. Mas será que há outro, apetece-me perguntar?) 

4 comentários:

  1. "No meu mundo, faz-me falta humor. Faz-me falta a ligeireza da vida, a relativização das adversidades, o sorriso pelo sorriso, a graça pelo próprio erro. Necessito de espíritos onde caibam enganos, onde nasçam gargalhadas, onde o rigor não se instale, ciente na sua (fraca) capacidade." Adorei.

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  2. Eu indico e escolho também o caminho do coração, sempre, mesmo sabendo que às vezes pode não correr bem e haver surpresas nas voltas do caminho... ;)

    Beijinho, CF!

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    1. Isso Isabel. E que venham as surpresas. Só sobrevivendo às más, conseguimos viver as boas.

      Um beijinho, boa semana para si.

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