© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 4 de julho de 2014

inveja

Um dos males do mundo é a inveja pura e dura. Gostamos de baptizá-la de outro nomes mais brandos, juntamos-lhe "da boa" à descarada, mesmo em frente ao nome próprio, para que neste formato perca a condição menos nobre de cobiça declarada. É como quem diz estou contente por ti, quando na verdade o que se está é mesmo triste, por não se ter ou por não se ser, por não se chegar ou por não se conseguir. Vejo por mim, não é preciso ir longe, e deixo-vos um exemplo menor. Hoje invejei a serenidade do homem que trabalhava na estrada enquanto eu esperava. Invejei-lhe, assumo, invejei-lhe os gestos lentos, a demora na preparação dos materiais, o olhar tranquilo para o vazio do nada enquanto os carros se acumulavam na estrada, à espera. A tranquilidade dos outros é das minhas maiores invejas, um pecado capital reconhecido, sem limite e com algum pudor. Não a cobiçaria, é claro, se o tempo para mim fosse um bem obtido, um empreendimento conseguido, um estado adquirido por usucapião. Não é, o vagar a mim nunca me chega para coisa nenhuma, é sempre escasso, longínquo, insuficiente e diminuto. Se lhe roubaria a tranquilidade de esticão (facílimo, na placidez dos actos), e o deixaria cercado pela minha urgência? Pois não sei, talvez não, por uma questão de respeito social. Mas não é por isso que não a queria para mim, à calma, toda ela, desde a que lhe transparecia dos olhos à que lhe escorria das mãos. É inveja, pura e dura. Ou "da boa" (que seja então).

2 comentários:

  1. Gosto muito, muito mesmo, desta sua análise e do modo como a transmite, CF!
    E, no entanto, aquilo que nos parece calma e serenidade não é, muitas vezes, senão uma ilusão. E a lentidão não significa necessariamente serenidade...
    (Vou-lhe dar um exemplo, também, que lhe pode parecer absurdo e espero que não lhe pareça "abusivo": quem a lê, a si, por exemplo, encontra recorrentemente este tema do desejo do vagar, de um tempo que é sempre escasso e nos faz tantas vezes deixar de lado o que (nos) é essencial. E, no entanto, quem apenas a vê não diria isso, porque há nos seus olhos muito mais serenidade do que inquietação - talvez por estar muito habituada a ouvir...)

    Espero que não me leve a mal... Queria só explicar-lhe que nem sempre o que vemos é totalmente como o vemos. E, se dou este exemplo faço-o com respeito e com o afecto e a amizade que acho que já existe entre nós ;),

    Um beijinho e... até breve! :)

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    1. Claro que não a levo a mal Isabel. :) Mas acredite que sou bem mais transparente na escrita do que no semblante, pelo menos no ponto em questão. Pode ser de estar habituada a ouvir, sim, por vezes debaixo de alguma inquietude, que ninguém pode perceber... Desenvolve-se alguma postura e concentração... Também sei, por isso mesmo, que muitas vezes a serenidade transmitida não é real. Mas não raras vezes transparece de tal forma, e apetece-nos tanto, que quase cremos que é...

      Um beijinho e obrigada pela sua simpatia. Até breve...

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