© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 5 de agosto de 2014

Às estrelas, deixem o Céu (iv)

 
Diz-se que as infâncias felizes não têm história. Não sei se alguém o escreveu, mas a minha foi muito feliz e teve muitas. Da minha extrema infância lembro-me do restolho vindo do fundo da terra nas noites quentes de Verão, do meu tio Luís sentado no alpendre com o Cohiba a dormitar encostado aos lábios e com a mão esquerda em concha sob o cálice de Armagnac; do meu pai vindo da caça com ar maroto, muito suspeito com o produto da pólvora, antecipando os meus olhos surpresos e os dos meus irmãos; das conversas cruzadas entre a minha mãe, a minha avó e a criada, a minha querida Odete, sobre as patifarias que o meu tio teria feito à tia Ritinha. Mais do que com estas palavras, bastariam dois ou três acordes do Steinway & Sons da sala de estar, uma ou duas fotografias da Leica do meu pai ou três ou quatro copos de balão meios cheios de conhaque para melhor descrever aqueles serões com cheiro a pinheiros e a castanheiros de felicidade. Não sei que idade teria, não interessa que roupa vestia, nunca descobrirei que horas seriam e muito menos que patifarias o meu tio fizera. Ficou aquele barulhinho doce, os retratos e os cheiros difusos pelas nossas reminiscências.

As infâncias felizes não têm história, mas algumas são como as estrelas que perduram muitas vidas.

12 comentários:

  1. Paulo
    As infâncias felizes são activos de grande, enorme valor. Ainda há pouco, ao rasgar uns papeis senti o cheiro do bolo de mação com que a minha avó Joana regalava os netos. Shalimar, esse aroma de que guardo um resto num frasco, lembra, para sempre, a minha Mãe.
    Mas o Cohiba e o Armagnac, um Coltrane na minha coluna Bose e uma lareira acesa na sala, sou eu, euzinha. Umas vezes em solitário, enrolada no sofá a ler um bom livro. Outras, mais distantes, com uns braços à minha volta e uma sala com vista para a Torre Eifel. É ao somatório destes instantes que eu chamo de felicidade!

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    1. O meu tio Luís é uma imagem recorrente da minha infância. Arquitecto de formação belga foi um homem com mundo, desde a África Negra à pesca do salmão nos rios da Escócia. Um sedutor, culto e inteligente, amante das coisas boas da vida. Lembro-me que já nessa altura era um apaixonado pela tecnologia e design dinamarqueses e nos trazia as mais bizarras colunas de som Bang & Oflussen. Tínhamos uma relação muito próxima e bonita, de sábio e de feliz aprendiz.

      De uma certa forma, talvez literária, as infâncias felizes não têm realmente história...

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  2. Esqueci: belo título este de "Cair em tentação". Quem não cai?!

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  3. Eu acho que todas as infâncias têm história(s). E essas reminiscências, que nos surgem de repente, num cheiro, num som, numa palavra, num lugar ou seja no que for, quando são felizes, aconchegam-nos o coração. Eu, por exemplo, quando sonho com uma casa, é sempre com a casa grande da Conde de Valbom, onde vivi até aos vinte anos.

    Quanto ao novo nome, também o acho muitíssimo adequado. Por aqui, é fácil "cair em tentação". E voltar, e voltar, e voltar...
    (ao som de uma música assim, melhor ainda...)

    Beijinho :)

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    1. Têm, Isabel, mas provavelmente umas mais do que outras. Talvez uma "pessoa feliz" (seja lá o que isso for) não tenha tanta necessidade de lembrá-las ou, pelo contrário, é feliz porque as tem em demasia. Tudo depende da importância que cada um vai dando ao seu passado ao longo da vida.

      Obrigado e beijinho :)

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  4. Mas a nossa infância não é sempre cheia de história? A história é que pode ser triste ou não.
    A infância ser triste não lhe tira a sua história.
    Felizmente também tenho sensações únicas que me recordam uma infância feliz!

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    1. Maria João, lembrei-me de um dos começos de um romance mais famosos de sempre: «Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira» (Anna Karenina, de Liev Tolstói). Talvez daí possamos literariamente concluir que todas as infâncias felizes não têm história... não sei, pode ser abusivo, deixo ao seu critério, mas foi neste preciso sentido que me quis expressar. Não há grandes traumas, não há grandes histórias...

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  5. As infâncias têm história e essa história prolonga-se pela adolescência até à maturidade. Os traumas ficam, as boas recordações também. Mas temos uma tendência para esquecer o que foi mau e só lembrar o que foi bom....

    Na velhice vem a amargura e o ricochete dos traumas que sempre estiveram no nosso subconsciente.

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    1. Se todos nós conseguirmos chegar lá, na velhice caímos na tentação de azedar, sim. A velhice é a nossa última prova de vida; há que saber passar com distinção.

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