© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

alucinações

Às vezes fico um bocado farta das idades e situações estipuladas para fazer coisas. Nunca simpatizei com Jean Piaget, aproveitei-lhe o essencial, deitei um olho aos estadios do desenvolvimento, decorei uma ou outra coisa básica, normativa, mas depois quase esqueci. Não aprecio a marcha que tem de começar ao ano, o diálogo que tem de surgir aos dois, a socialização que deve prosseguir logo depois, após as fases de egocentrismo declarado. Acho um exagero que só as crianças possam fazer birra, que só os velhos tenham o direito a caminhar devagar, que só os adolescentes possam sonhar, que só as mulheres novas possam ser umas atrevidas. Não aprecio a ideia de que só aos quarenta se cortem cabelos para cortar em idade, que só se possam pintar brancos e que esses tenham mesmo de se pintar, que as rugas sejam impreterivelmente para disfarçar,  as gorduras para ocultar, as gulas para matar. Estou farta, fartinha dos ditames que insistem na compartimentação da vida, que apregoam a inquietação como um sintoma a abater, a tranquilidade como uma preguiça impossível, a velhice como um fim de vida, e a juventude como um lugar onde ninguém sabe morar. Cansam-me, cansam-me as necessidades de perfeição indexada à norma, os armários insistentemente arrumados por ordem de possibilidade, as combinações feitas à partida por quem não vive do corpo para dentro, mas opina sempre e muito do corpo para fora. A necessidade de ordem é um dos problemas do mundo. Enquanto não misturarmos o todo, estilos, raças, cores e possibilidades, agora, antes e no fim da idade, jamais viveremos num mundo livre. A presunção dessa existência é um sinal de insanidade, parca visão, ou elevada capacidade de alucinação. Qual delas a mais assustadora.

2 comentários:

  1. Nunca me debati tanto com isto, como desde que nasceu o meu filho. O que dantes me passava ao lado, por sentir que dependia da minha vontade fazer da vida aquilo que queria (egocentrismo, pois claro), passou a estar muito presente por ter dado à luz um ser que é da minha responsabilidade e que ainda depende muito de mim. Dou por mim a querer ter voz nesta sociedade que espartilha e esmaga a liberdade mas é tão tão dificil, mesmo porque a emenda pode ser pior do que o soneto quando as nobres causas deixam "mártires" pelo caminho. E cobarde me confesso, não quero que o meu filho seja um mártir daquilo em que acredito.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Claro que não, nenhuma mãe à partida quererá isso. A questão será quase utópica, também sei disso. É necessária a norma para nos "acolher", torna-se exagerada, em algumas situações. Eventualmente um equilíbrio. O tal desejado, o tal impossível...

      Eliminar