© Paulo Abreu e Lima

segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Deus, sai da minha vida!


Tínhamos catorze, quinze anos. De uma certa forma já estávamos habituados ao registo fleumático e imprevisível do professor Queda. Tanto nas aulas de matemática, como nas de religião e moral. Um dia, numa destas últimas, entrou de mansinho na aula e escreveu fulminante em giz branco no quadro a frase supra. Fila a fila, um a um, fitou fundo os olhos e, cáustico, perguntou: és capaz de gritar e assumir bem alto aquela frase? Era uma manhã escura de Dezembro e, se estava frio, a sala congelou. Ninguém a proferiu: "não, setôr", "posso não acreditar totalmente em Deus, mas não sou capaz de gritar isso", "eu amo Deus, setôr…". Chegou a minha vez. Era muito bom aluno, sem a menor modéstia, mas essa realidade nunca constituiu um fim em si mesmo, era puramente instrumental. Posso explicar. O meu desempenho exemplar permitia "certas liberdades". A de confrontar aberta e consubstancialmente as matérias estudadas, a de pedir vinte valores cada vez que me perguntavam a nota que deveria ter, a de contrariar o professor de filosofia à frente da sua aluna-xodó. Claro que atirar o apagador de madeira uns vinte metros pelo corredor, durante o recreio apinhado de alunos, e acertar em cheio na careca do professor Queda não cabia exactamente no conceito das "certas liberdades", mas soube muito bem e ele nunca acreditou na minha canalhice. Mesmo no dia seguinte em que estava ali, especado à minha frente, com um inflado galo no cocuruto, esperando a minha resposta:
 
– Senhor professor doutor – ele adorava ser tratado assim, até um dia, muitos anos mais tarde, em que soube que lhe retiraram os títulos na sequência de um processo judicial dos pais dum aluno agredido brutalmente por ele (ao que parece, nunca deveria ter podido leccionar por, entre outros itens, falta de habilitações) –, posso aqui nesta sala proferir em plenos pulmões "Deus, sai da minha vida", mas é mais difícil gritar o seu contrário. Pedir que saia é desafiar um acto de temor, rogar que entre, entre sempre, é não temer a graça do Senhor.
 
Voltou-me as costas, coçou a protuberância encarniçada, apagou a frase do quadro e foi para a secretária falar mal dos fariseus. No final do ano baixou-me um valor a matemática.
 
Nos meus quinze anos era bem mais católico, sensato e destemido. Já hoje, receio muito mais os outros.

4 comentários:

  1. Paulo
    Curiosamente já pronunciei essa frase mais do que uma vez. E até na interrogativa.
    Hoje, creio ser uma forma de amor. Semelhante àquela que se pronuncia quando alguém que amamos muito nos falha redondamente...

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    1. Tal e qual, Helena. Aí, quantas vezes preferiríamos sair da sua Graça...

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  2. É um comentário um pouco fora do contexto, mas fez-me regressar ao meu 12º ano...
    Sou pessoa que foge de confrontos ou discussões e dos poucos que tive na vida, foram com dois professores de Filosofia, em que um deles até a conselho directivo o levei para provar que estava errado, quanto à sua atitude arrogante de achar que podia discordar da minha opinião. Luta que ainda hoje mantenho, devido às redes sociais. Acho que ainda hoje as pessoas não respeitam as opiniões de outrem. Não diferem o conceito de respeitar e entender do conceito de validar. Mania que existe de se ver só um caminho...

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    1. Às vezes é melhor deixá-los com "a bicicleta"... a menos que esteja em causa a sua honestidade intelectual, Anita.

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