© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

musgo

Venci o medo há 32 anos. Nesta altura do ano, devo dizê-lo, matei o medo no Inverno, na serra onde se amontoava um musgo cheio de bichos medonhos que poderiam alcançar-me os dedos pequenos e pontiagudos. Agarrava os tufos, puxava-os para cima, colocava uma faca por baixo e depositava-os na caixa de madeira que Carmina transportava em braços, um peso que só visto. Lacraus, dizia ela, havia aos montes, e o jogo era de sorte ou azar. Sendo assim, sempre que avistava um aglomerado verde, sorria. Logo que poisávamos a caixa temia, quando enfiava os dedos na terra fria já tremia, e só sossegava quando, sã e salva, arrumava o verde musgo no seu local devido. Depois da empreitada seguíamos para casa, não fosse fazer-se tarde. Forrávamos o chão a jornal, depositávamos o musgo direitinho, desenhávamos um carreiro a areia, um lago a prata de chocolate, elevávamos o anjo ao seu lugar divino e aninhávamos Jesus, quieto e imaculado, na gruta supostamente quente, feita de pedra gelada. Só no final de tudo lavava as mãos. Só no rescaldo da festa sossegava realmente o espírito e acalmava a ânsia do medo,  fundida na excitação da construção do presépio. O Natal para mim sempre teve muitas festas. O medo também sempre foi uma parte do caminho, aquela pela qual passamos até chegarmos ao local pretendido. Os medos mudam com o tempo. Hoje não há lacrau que me tire o sono, mas sou bem capaz de me assustar com um devaneio, que pode ser um vazio invisível de coisa nenhuma. De qualquer forma, e verdade seja dita, já não apanho musgo. Isso era na altura em que havia avó e presépio, só os bichos assustavam, e as fantasias eram toda uma realidade.

2 comentários:

  1. "Hoje não há lacrau que me tire o sono, mas sou bem capaz de me assustar com um devaneio, que pode ser um vazio invisível de coisa nenhuma." Sofro do mesmo...

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