© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

Vicente

(Foto retirada do google)

O baloiço está no exacto local onde Vicente, o corvo, fez das suas em cima da minha cabeça. Perseguia-me e falava para além de me utilizar como sanitário, e portanto lembro-me dele com frequência. Victor, o tio residente em França que entretanto regressou casado com uma francesa sempre florida, matou-o numa véspera de Natal. Passou-lhe com as rodas por cima na chegada, e veio com a piadita do costume, como se tivesse sempre graça - Matei uma galinha preta ainda agora. Amaldiçoei-o mas de nada me valeu, Vicente estava morto, e Victor ainda hoje é vivo. O baloiço está no exacto local onde sempre esteve, penso que já disse. O poço repousa sem horta para regar, o canil descansa sem cães para aninhar, a adega não tem vinho e o lagar já não guarda azeite. As coelheiras estão vazias de coelhos, mas dizem que os ratos se albergam por lá, não sei, não me pus a isso, não por medo mas por respeito à bicharada, que devia estar em descanso. Augusta ainda mora lá perto. Meio sozinha, protegida por um tronco de madeira quente que arde noite e dia sem parar, quem disse que a companhia tem de falar? A solidão é um monstro que me assusta sempre e também no Natal. Há muito que perdi a crença no dito que a elogia em detrimento da má companhia, vejo isso com estes olhos todos os dias. Quando me concentro na vida, quando deambulo entre as escrituras divinas e perscruto as mentes perversas percebo sempre, rigorosamente sempre, a mesmíssima coisa. A solidão mata mais do que o desejável, e a má companhia é um alento que espicaça a existência infeliz. Nenhuma será preferível, mas suponho que a segunda seja bem mais fácil de atravessar. O baloiço está lá, já disse, certo? Hoje, só hoje, fiz-lhe companhia, quase tanta quanta a que ele em tempos me fez a mim. No silêncio da tarde, um e outro. O Vicente, juraria, olhava por nós.  

4 comentários:

  1. A solidão é um buraco negro sem fundo. Também me assusta.

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    1. É difícil analisá-la. É individual, particular, própria. Talvez por isso tão complexa...

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  2. O poço, a horta sem rega, o canil, a coelheira e o tronco fizeram-me lembrar o monte da minha bisa. Lá está. Sozinho, sem ela.

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    1. Uva Passa, isto tudo que falo era da minha avó, mas também tive uma bisa com um monte assim... Sabe, em tempos esforçaram-se por me fazer acreditar que a vinculação e o amor nascem na ausência das pessoas, e nos mecanismos que utilizamos para lidar com ela. Pena que a vida se encarregue, por ela, de acentuar isso mesmo, quando os nossos partem para sempre.

      Um bom ano para si...

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