© Paulo Abreu e Lima

sábado, 24 de janeiro de 2015

a casa

Descobri ainda agora que afinal a casa velha do alto do monte, ainda pertence à família Ferreira. Ou seja, acabo de saber que a figueira ainda poderá dar-me figos, que o forno ainda poderá cozer-me pão, que o fogão a lenha ainda poderá apurar-me uma sopa de feijão com chouriço, e que o altar do quarto dos fundos ainda se poderá erguer, entre anjos e santos, novenas e terços, preces e orações. Num instante relembro que quem rezava já partiu. Que quem colocava as nossas fotografias encostadas ao padroeiro já nos deixou há muito tempo, num dia chuvoso em que a encontrei a cortar um bolo às fatias, para comermos ao lanche. Nunca mais encontrei uma trança igual à dela, a não ser recentemente, por baixo de um lenço negro apertado a um pescoço. Era comprida e dava muitas voltas, tantas que eu não conseguia contar. E era branca e sossegada. A braseira da entrada aquecia-me sempre os pés, e as violetas do jardim cheiravam sempre a casa. A samarra quente do bisavô ficou-me no goto, era quente e pesada. A sombra do alpendre guardava umas arcas de madeira enormes, depósitos de um mundo que eu nunca mais vi. Não foi vendida, garantem-me, está apenas habitada por outros. Quase nem acreditava, fiquei em ânsias, fiquei feliz. Nunca mais encontrei um universo maior do que as arcas da minha bisavó, e julgo ser porque ele já não existe em mim. Lá eu podia ser e fazer tudo quanto queria, quase só com uma manta de retalhos. Talvez seja por memórias como esta que elogio a brincadeira até ao limite da minha existência. Vida fora deixamos de viver na imaginação e encontramos a realidade, e a realidade agora é isto: posso voltar à casa velhinha dos meus bisavós. Posso sentar-me no alpendre, posso comer a sopa, posso aninhar os coelhos e espreitar os fenos por trás da horta. Posso até estender a manta e comer os figos. Mas não posso, já não consigo, acreditar na vida da minha vontade como quem veste uma boneca, constrói uma torre de carrinhos de linhas, ou desenha um avião. 

8 comentários:

  1. Adoçam-nos, as memórias... Pena que já não tenhamos o mesmo olhar inocente e ávido sobre a vida.

    Boa tarde, CF. :)

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    1. Adoçam, Maria. Por isso eu acho que os meninos devem ter direito a brincar até à exaustão. E a ter avós e brinquedos feitos de coisas simples. Não há como a infância para qualquer coisa nos bastar e nos fazer sorrir...

      Boa noite... :)

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  2. Também tenho as melhores recordações da casa dos meus avós na Rua Vale do Pereiro em Lisboa, onde fui feliz durante anos até a minha Avó ter de abandonar a sua casa por quererem construir prédios horrendos no centro da cidade. Deram-lhe uma indeminização ridícula e mandaram-na para a nossa casa no Restelo, onde ela nunca foi feliz.
    Aquela casa era a imagem da minha infância e adolescência, um dos locais sagrados da minha vida: objectos, lifestyle, amor e carinho.....música, gestos feitos de ternura. Quando lá dormia, era uma princesa, como agora se diz, era única e os avós eram meus, só meus.

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    1. :) E são tão consistentes essas recordações de infância, que facilmente percebemos serem parte fundamental da nossa estrutura mental. Seguram-nos de pé, costumo dizer, especialmente quando sopra o vento.

      Beijinho para si Virgínia. Um bom Domingo...

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    2. Quem destrói uma casa de avós, destrói uma parte integrante da vida dos netos....por isso nunca concordei em ir viver - mesmo por poucos dias - em casa dos meus folhos. Quero um espaço meu, mesmo que pequeno, enquanto puder ser independente. Fico num hotel quando vou visitá-los.
      Um Bom Domingo, CF.

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    3. :) Concordo. Uma parte muito significativa de mim, vem deles e das casas deles. De vários, bisavós incluídos, como se vê pelo texto...

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  3. Infâncias assim, fazem adultos mais felizes e com uma outra perspectiva da vida. Valorizar as pequenas grandes coisas, resgatar as memórias do passado em que a vida era assim tão simples e por isso mesmo tão perfeita!

    Boa semana.

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    1. É isso mesmo. Simples e perfeita... Não sei o que seria de mim, sem a minha infância... :)

      Boa semana para si também...

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