© Paulo Abreu e Lima

sábado, 7 de fevereiro de 2015

certeza

Enfastiam-me as certezas absolutas do mundo com o qual me cruzo todos os dias. Talvez também porque necessito que o tempo passe por mim com a indefinição de um futuro, ao qual me subjugo com o dever incumprido de um enigma por resolver, tão eterno quanto o vento da nortada. É claro que também tenho as minhas evidências, fazem parte da minha identidade, dos meus valores, dos meus sentires, das minhas crenças, mas encaro-as humildemente, como uma propriedade pessoal e intransmissível, uma espécie de cartão de cidadão com números únicos que me pertencem exclusivamente. A segurança social, o contribuinte, a data de nascimento, o nome do pai e da mãe. Apregoarmos as nossas certezas com berros de feira é um risco de carácter maior. Gritar aos sete ventos clamores de convicções como quem vende um disco riscado, um casaco roçado ou uma mala desasada, acarta o perigo de nos olharem com ar de descrença total, devidamente fundamentada, é muito mais certo do que a rigidez da certeza. 

(Ninguém tem o direito de ter verdades absolutas do corpo para fora, já do corpo para dentro é com cada um e com cada qual. Hoje, por exemplo, fui ao talho. Ia jurar que o talhante rasgava os bifes como quem arranca bocadinhos à senhora impertinente do balcão, tal era a fúria com que cerrava a boca e rangia os dentes. Mas isto sou eu, claro, a Dona Antónia certamente só lhe mirou a competência manifesta em cada golpe certeiro que lhe sulcava a carne para o jantar. Por esta hora, entretida, escrevo leviana e descomprometidamente sobre o assunto. Ela por certo já jantou a carne suculenta, satisfeita na companhia do marido. Por sua vez o talhante, o único detentor da verdade, deve ter passado o dia a ser simpático com senhoras donas de casa, e por esta hora, algures em algum lado, já nem se lembra do que aconteceu.) 

2 comentários:

  1. Se calhar, nem o talhante é o detentor da verdade. Eu, por exemplo, nem com as minhas verdades atino. :)

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    1. Ora aí está Luísa. Julgo que a sua realidade será muito transversal, mas reconhecê-la é sem dúvida um acto maior...

      Um beijinho. Bom fim de semana para si.

      :)

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