© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

como vai a senhora? se me levasse depressa estaríamos conversadas!

J. morreu há pouco. Tinha um cancro de pâncreas em estado avançado, metastizado nos ossos, intestinos, estômago, corpo. Tinha sessenta anos, uma vida envolvida por números e projectos, dois filhos, dois netos acabados de nascer. Disse-me sempre que estava muito bem, obrigada, a boa educação persegue os Senhores até aos confins da vida, aquela que nunca sabemos quando acaba a não ser quando chegamos perto da morte e a conseguimos ver, frente a frente, eu aqui e tu aí (- como vai a senhora?). - O que dizem os teus olhos?, perguntará ela. Os olhos de J. nunca disseram medo. Diziam uma doçura comida pelo tempo, um vazio assanhado pela dor, um fim que quem estava de fora sabia ser a única verdade. Ele também saberia, e por causa disso resolveu levantar-se e fugir. Não sei se dela, morte, se dele, sobrevida, se de ambos, não chegou a dizer-me, antes disso entrou numa ambulância que o levou de emergência após a queda, para uma cama de um hospital. Não chegava a vaga para o internamento, havia um corredor onde os profissionais de saúde se dividiam entre quem queria viver, quem queria comer, quem queria dormir, quem queria curar. Decidiu que não desejava estar ali e despachou o assunto num ápice. Uma noite foi o quanto lhe bastou para mostrar ao mundo que aquele não era o lugar de um homem doente, e sendo assim escolheu morrer. Percebo-o, percebo-o na perfeição, um hospital pode não ser o local de um homem doente. Um homem doente com cancro pode necessitar de cuidados adequados a uma extrema debilidade física e emocional, cuidados esses que não existem numa estrutura de apoio na urgência, com resposta efectiva na emergência, mas sem recursos para atenuar sofrimentos prolongados. O que me choca verdadeiramente nestes processos, não é o J. que morreu de cancro. Nem sequer me perturba em demasia a falta de recursos, estão a ser criados, vai devagarinho, a velocidade de ponta nunca chegou ao meu país. O que me instabiliza, o que me aterroriza, é a falta de apoio dos serviços nos locais onde uma voz serena e apaziguadora é o mundo todo, antes da ruptura acontecer. J. morreu de cancro em estado terminal sem ser sinalizado para uma unidade de cuidados paliativos. J. morreu de cancro num corredor de um hospital onde a hidratação era preocupação maior enquanto a solidão da lucidez era a dura realidade. J. morreu numa noite porque teve pressa, mas há que morra em duas, três, quatro, semanas, meses, devagarinho, entre caminhos ferozes e vozes caladas. Um dia, se for eu num caso semelhante, asseguro-vos, também terei muita impaciência. Não aprecio nada corredores frios de hospital, e o que lhe direi, será sempre um claríssimo: se me levasse depressa estaríamos conversadas.

A pressa, será sempre inimiga da perfeição. 

4 comentários:

  1. Este post é demasiado cruel para conseguir comentar.
    Oiço a Traviata, a morte é inevitável.....

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    1. Virgínia, concordo consigo, está cruel. Se o poderia ter aligeirado? Poderia. Soaria mais leve, mas estaria também muito mais distante da realidade...

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  2. Querem matar o Sistema Nacional de saúde. E ele teima em não morrer. Pelos extraordinários profissionais que tem. Mas querem matá-lo.
    Não há cuidados paliativos em hospitais em ruptura. E os hospitais estão em ruptura. E estão em ruptura porque é urgente que estejam, num País que se quer de cócoras.
    Os dados da OCDE saíram esta semana: O governo português, cortou na saúde o dobro do que estava acordado com a troika. O DOBRO! Uma vergonha e um desrespeito para com um povo inteiro, que espero não fique impune.
    GS

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    1. Concordo consigo. Assusta a repercussão que tais actos têm tido no povo e na sua dignidade. É tremendo em termos sociais...

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