© Paulo Abreu e Lima

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

ruído

Há determinados aglomerados que me assustam pela sua potência. Um conjunto de mulheres desgovernadas é um deles, e acabo de olhar para um significativo. O perigo centra-se na contenção aparente a que se sujeitam grande parte do ano, por entre filhos, empregos, compras e limpezas ao fim de semana, com pouquíssimo tempo para atrevimentos do ego. O pobre abandonado não morre, insufla despercebido. Sugere-se tímido e sonegado, esconde-se em nome da ordem, obedece ao comando e encolhe até à mais elevada anorexia do eu, uma lástima que só visto. É uma dor de alma, encontro-os todos os dias por onde passo. No supermercado, no talho, na pastelaria, nos passeios da estrada, nos gabinetes dos consultórios. Assim, individuais, não me metem medo. Discretos, mesmo que venham emparelhados, aguentam-se sem agressões de maior que me causem aflição. Só me assustam, confesso, quando o número começa a ser suficiente para a imagem se afigurar aterradora, ou seja, poucas vezes no ano, normalmente quando algum acontecimento importante marca a cidade. Nesses dias, é vê-las nascer. É apreciar as pernas longas, os saltos agulha, as ancas redondas e os cabelos ao vento. É descobrir que lá em casa existe um bâton encarnado, que a voz apareceu, que os passos ainda correm elegantes e erguidos, que os peitos ainda se riem para o céu. É espreitar, olhos nos olhos, que o comedimento é uma regra de oiro para quem não aprecia emergir em debandada, e que o melhor remédio é soltar a franga mais vezes por ano, quando o corpo quer e a vontade surge. Agitações contidas aparecem sempre em formato explosivo e francamente barulhento. Um tremenda violência para quem degusta a noite, no recato de uma varanda batida pelo vento.

6 comentários:

  1. E no dia seguinte, guardam o bâton vermelho na gaveta, arrumam os sapatos de salto agulha, calam a voz e as emoções e encarrilam novamente no comedimento e abnegação do seu quotidiano exigente, perfilando-se nas filas de trânsito e supermercado, encolhendo-se nos seus múltiplos papéis … até à erupção seguinte, com data e hora marcada.

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    1. Isso Miss Smile. A hora marcada é uma coisa danada, não lhe parece?

      Um beijinho para si.

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  2. É, sem dúvida uma coisa danada. Deixe-me apenas acrescentar que me dá muito prazer ler a sua escrita.

    Um beijinho também para si

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