© Paulo Abreu e Lima

domingo, 1 de março de 2015

jogo de azar

A vizinha de baixo morreu ontem. Hoje o vizinho chorava inconsolável no vão da escada, num desespero que aos oitenta mora perto da solidão. Estendi-lhe uma mão e toquei-lhe o braço, ao mesmo tempo que lhe dei a minha disponibilidade para o escutar e ajudar, coisa quase nenhuma, sei disso. Agradeceu-me e seguiu para a garagem, bambo na nova realidade que não consegue conceber. Teme nunca mais conseguir entrar no carro, pragueja contra Deus que deveria tê-lo levado no exacto momento em que soube da notícias, desdenha os restantes dias que lhe faltam como se fossem uma pena que terá de cumprir, perante um futuro que já não quer. A vida não foi feita para ser branda, e a morte tardia é também ela uma morte estranha. Vem na hora que dizem ser certa, entra pela porta da frente, sai airosa e prossegue para outra casa, o que não morre tem de aceitar: é a lei desta estranha vida. Mas a lei do mundo de quem cá fica, sozinho, no fim do caminho, passados cinquenta e sete anos de vida comum, é sempre uma maldição. A morte raramente acerta para quem cá fica de um enorme percurso a dois. E é por isso que neste jogo, quase todos escolhiam perder.

8 comentários:

  1. Este seu post traz-me imediatamente à ideia aquela lindíssima canção de Brel "Les Vieux" que dá conta dessa terrível realidade desta maneira: "Et l'autre reste là/ le meilleur ou le pire/ le doux ou le sévère/ cela n'importe pas/ Celui des deux qui reste/ Se retrouve en enfer/ Vous le verrez peut-être / vous la verrez parfois/ en pluie et en chagrin/ traverser le présent/ en s'excusant déjà/ de n'être pas plus loin. Tem tudo a ver com o que escreveu...

    Beijinho :)

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    1. Pois tem Isabel. Um luto no final da vida é terrível. Julgo que grande parte das pessoas não tem noção da dimensão, dado que, lá está, é normal que aconteça...

      Um beijinho para si.

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  2. O peso da solidão é um fardo gigantesco!

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    1. Certíssimo. Costumo dizer que, eventualmente a para e passo com a culpa, é o maior peso do mundo...

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  3. Quando alguém muito próximo parte, leva uma parte considerável da nossa vida consigo. E a cada novo dia que passa leva mais um bocadinho de nós. Vamo-nos desvanecendo no fluir dos dias, apagando no vazio daquela ausência irreparável, extinguindo na neblina do tempo.

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    1. Miss Smile, parece-me que sabe do que fala... Quanto mais lido com a perda em termos profissionais, mais escuto esse roto de que tanta gente se queixa. Falta um pedaço de história, logicamente uma parte de nós...

      Um beijinho para si.

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  4. Eu escolheria perder sim...

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    1. Também... No fundo, eventualmente, a única escolha ganhadora...

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