© Paulo Abreu e Lima

terça-feira, 17 de março de 2015

A Palavra Cantada (Ler este post apenas se puder ouvir a música)

Se é verdade que há uma diferença abissal entre uma palavra escrita e a mesma falada, esta diferença submete-se ao expoente mais elevado quando cantada. Uma palavra cantada ganha formas de corpo – é corpo – que nos toca de uma feição totalmente distinta à da inscrita num papel branco. Nem todos os estilos literários são cantáveis. A Poesia, talvez pela métrica, cadência, ritmo, é o que mais se adequa e melhor se transforma em música. Já na Grécia Antiga, grandes obras (a Ilíada, por exemplo) eram declamadas ou representadas acompanhadas por instrumentos musicais. Entre eles, a lira (além da flauta) ganhou grande popularidade, emprestando à própria literatura uma nova forma: a poesia lírica. Sobre este tema, a palavra cantada, convido-vos a lerem comigo o seguinte poema de Chico Buarque:

Folhetim
 
Se acaso me quiseres,
Sou dessas mulheres
Que só dizem sim.
Por uma coisa à toa,
Uma noitada boa,
Um cinema, um botequim.

E, se tiveres renda,
Aceito uma prenda,
Qualquer coisa assim.
Como uma pedra falsa,
Um sonho de valsa,
Ou um corte de cetim.

E eu te farei as vontades,
Direi meias verdades,
Sempre à meia-luz.
E te farei, vaidoso, supor
Que és o maior e que me possuis.

Mas na manhã seguinte
Não conta até vinte,
Te afasta de mim.
Pois já não vales nada,
És página virada
Descartada do meu folhetim.
 
Sem grandes equívocos, ele descreve uma mulher algo interesseira que por uma tuta-e-meia faz o que lhe pedirem por uma única noite (folhetim). Não é muito exigente, mas se ele tiver dinheiro, quer um presente (uma pedra falsa, um sonho, um vestido), qualquer coisa que a satisfaça. Sem grandes aparatos, induz-nos à presença de uma "mulher de vida fácil", mas de poucos luxos.
Convido-vos a ouvirem as mesmas palavras agora musicadas. Ficam com a mesma opinião? Eu não.


(F. Ferreira - Modelo profissional)
 

17 comentários:

  1. Cantadas com essa voz tão doce, não poderiam mostrar ser o que são, de facto.
    Bom dia Paulo

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    1. Ora muito bem, CQMT, a voz da Luiza Possi foi escolhida a dedo para modificar ainda mais o sentido das palavras.
      Bom dia :)

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  2. De facto a versão cantada apela a uma mulher frágil e sofrida que não quer compromissos com ninguém enquanto a escrita é mais fechada lembrando de facto uma prostituta.Canção mailinda.... =D

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    1. A canção é bonita, sim, mas não vá pela voz... :)

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  3. Gosto muito desta música pela sua ambiguidade. A voz aveludada de Gal Costa faz-me pensar numa mulher sensual que procura a satisfação do seu próprio prazer e não se afeiçoa a nenhum homem em particular. O que ela pede explicitamente em troca é pouco (uma pedra falsa, um sonho de valsa, um corte de cetim), mas o que ela tem realmente em mente é viver a sua sensualidade, sem compromissos e preconceitos. Usando meias-verdades, ela o fará supor que a possui quando, na verdade, será ela a possuí-lo para o descartar depois. É mais um dos casos em que Chico Buarque põe na boca de uma mulher aquilo que, de acordo com as normas sociais, seria de esperar que fosse um homem a dizer. Com a voz de Gal Costa as palavras são (en)cantadas de uma forma sublime.

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    1. Não escolhi a Gal Costa por não ter a voz tão limpa quanto esta Possi, embora ache a interpretação da Gal fantástica. Só que temos um problema, Miss Smile :) A música não é dúbia, ou ambígua, como refere. A música fala de uma prostituta com todas as letras possíveis pela censura do Brasil em 1978. Esta canção faz parte da Ópera do Malandro, escrita pelo Chico, que aborda o jogo, a prostituição e o contrabando no Brasil dos anos 40. Todas aquelas meias palavras provêm da censura e não duma escolha deliberada do autor. O que pretendi frisar e enaltecer foi como se transforma com as diversas interpretações. Esta em particular, mas do que outras, lembra-nos uma mulher emancipada e totalmente livre de fazer o que bem lhe apetece, como diz. E era aí onde queria chegar: a palavra cantada ganha corpo de acordo com a forma como é entoada. Agora não se zangue comigo... :)
      Um beijinho.

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    2. Não consegui mais do que um ensaio da Ópera do Malandro:

      https://www.youtube.com/watch?v=tfJk7jmGMCE

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    3. Quando dissociamos uma música (poema, texto, autor, pessoa, etc.) do seu contexto histórico, corremos sempre o risco de fazer interpretações incorretas. Foi esse o meu caso. Sei que esta música faz parte da “Ópera do Malandro” que, por seu turno, se inspirou na “Ópera dos Três Vinténs” de Bertolt Brecht e de Kurt Weil, a que cheguei a assistir na Alemanha. Mas quando ouvi a forma como a voz de Gal Costa deu corpo a esta canção, as palavras por ela (en)cantadas ganharam asas na minha imaginação… e deixei-me levar :) Por isso, não me leve a mal, mas sempre que ouvir esta música, vou continuar a interpretá-la da forma como o fiz anteriormente, embora saiba que não foi essa a intenção pensada pelo Chico. Porque quando a ouço, ela torna-se minha e porque, para a sentir, tenho de a integrar na minha atualidade.
      E zangar-me consigo? Mas é que nem pensar! Gosto muito de vos vir visitar, onde sou sempre muito bem recebida e, acredite, saio sempre daqui mais inteligente.
      Um beijinho e obrigada pela sua delicadeza :)

      ps: Obrigada pelo link que não deixa margem para quaisquer dúvidas.

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    4. Também tive o privilégio de ver a Ópera do Malandro no Rio há uns 25 anos (penso que também já passou por Portugal) e para ser sincero não me lembro em especial desta música. Sei, no entanto, que quase todas que faziam parte do reportório tornaram-se famosas na voz de outros intérpretes. A ideia de alterar o sentido que damos às palavras escritas através da música foi, no essencial o propósito deste post, pelo que faz muito bem em eternizar o (en)canto da mesma na pessoa da Gal Costa. Quanto ao resto, é totalmente recíproco :)
      Beijinho.

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  4. Vi uma referência ao seu blog e caí logo em tentação... :) (mental note: um dia vou criar o meu, vou, vou criar o meu blog)

    Esta bonita letra do Chico Buarque foi criada para a Ópera do Malandro e cedida a Gal Costa que a canta magistralmente (esta Luiza Possi também a canta bem). Como conheço a música, não consegui dissociar da letra. Conta a história de uma mulher livre mas frágil que apenas quer viver um dia após o outro sem mais preocupações. Se fosse um homem passava despercebida, certo? :) Excelente foto, parabéns.

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    1. Tuxa, antes de mais, obrigado pela visita.
      Mas há uma coisa que me escapa: se sabe, e bem, que esta música foi composta para a Ópera do Malandro, também deveria saber o contexto da letra. Trata-se de uma mulher frágil, sim, e que quer viver um dia após o outro sem mais preocupações, mas não se trata de todo de uma mulher livre, vive das migalhas que o seu corpo proporciona. Se fosse um homem, era um gigolô.
      Obrigado.

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  5. O tema interessa-me de forma muito particular e tenho até por hábito pôr os alunos a pensar e a falar sobre ele quando estudamos o texto poético. A palavra escrita, dita ou cantada têm entre si diferença óbvias, sendo que a música (que ouvi alguém recentemente definir como a arte do significante por excelência ) lhe acrescenta sempre mais valor e significado.
    Não entendo, no entanto, muito bem a que se refere quando fala em "ganhar formas de corpo". Cantar um poema é sempre, de certo modo, interpretá-lo (no caso desta canção, por exemplo, de que gosto muito, já a ouvi cantada por diversas vozes - e à versão que aqui traz prefiro as de Gal Costa, ou mesmo de Nara Leão). Mas dizê-lo também o é, embora de outro modo.

    Bom, agora calo-me, mas não sem antes deixar apenas mais um exemplo peculiar - há tantos! - de como a música tira, põe, acrescenta, modifica um texto: https://www.youtube.com/watch?v=kNX91c90bng

    Beijinho :)

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    1. Subscrevo, palavra a palavra, o que diz "Miss Smile" sobre o texto. Só o Chico mesmo...

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    2. Isabel,
      Sendo a música "a arte do significante por excelência" que "acrescenta sempre mais valor e significado", então podemos inferir que toma outra dimensão, avoluma, torna formas de corpo em três dimensões (não falava de corpo humano), não concorda...? A versão da Gal Costa é mais quente, mas talvez menos cristalina. A de Nara Leão é mais lenta, talvez mais datada, mas também gosto.

      Olhe, essa versão de Camões lírico não conhecia, está... diferente!

      Beijinho :)

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  6. Car@ Anónim@ das 10.14 am,

    Não leve a mal, mas este blogue não aceita comentários anónimos.
    Note, não precisa estar registado, basta colocar um nome, que até pode nem ser o verdadeiro.
    Peço compreensão, obrigado.

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  7. Cancioneiramarço 20, 2015

    Um pseudónimo , deixa de ser anónimo?

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    1. Não deixa, mas é um pouco menos anónimo do que um de hora registada.

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