© Paulo Abreu e Lima

quinta-feira, 19 de março de 2015

Aurora

Cá na terra não se fala de outra coisa. Aurora perdeu o braço num acidente de trabalho, a seguradora limpa-se de responsabilidades, não foram cumpridas as normas de segurança. -Lamentável! gritam todos em alta voz. Também acho lamentável, mas vejo um outro lado da questão, certamente porque nunca irei ficar habituada à injustiça insistente da existência terrestre. Que as seguradoras se agarram ao limite da questão a fim de fugirem à responsabilidade, já todos sabemos. Que as entidade patronais muitas vezes não fornecem os equipamentos de segurança adequados também, estarão algures, ninguém sabe onde, se é que estão. Que o trabalhador facilita, também não é novidade nenhuma. É muito mais fácil estar em incumprimento, as botas de biqueira de aço incomodam, os óculos de protecção são um apêndice irritante, desligar máquinas enquanto se procede à limpeza do aparelho atrasa o trabalho e a vida, e o tempo não é complacente com a perfeição. Nada disto é novo, certamente é tudo incontornável, eventualmente são causas impossíveis de atender e resolver, não pela questão, mas pela máquina da sociedade. O problema, para mim, é que existem erros que ninguém deveria pagar, e por conseguinte o que lamento não é a seguradora que não paga, o patrão que não forneceu ou a trabalhadora que não cumpriu. O que eu lamento é o destino de Aurora, sozinha com três filhos e sem braço direito que lhe valha, em sentido literal e figurado. Ninguém deveria pagar por isto, e todos os focos, dela, das pessoas, dos próximos e dos distantes, estão a fugir do essencial. Talvez porque os mecanismos de projecção externa sejam uma estratégia de defesa quase perfeita, quando não existem outras soluções.

8 comentários:

  1. Estas histórias trespassam-me como setas.

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    1. Há histórias terríveis Uva Passa. Não deveriam existir...

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  2. Há coisas que não deveriam simplesmente acontecer. E é exatamente por serem tão inconcebíveis, tão monstruosas, que nos refugiamos em argumentos, indemnizações e explicações que nos tiram o peso insustentável do essencial. E, com isto, deixamos a Aurora abandonada à sua dor e à sua sorte.
    Um beijinho

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    1. É isso mesmo Miss Smile. E ninguém merece uma sorte assim... :(

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  3. É mais facil gastar as poucas forças que nos restam a justificar o passado, do que a lutar pelo futuro com o que nos resta.
    Mas nestecaso é nessa luta que a Aurora e quem a rodeia se deveriam focar.
    Pessoalmente tenha alguma dificuldade em aceitar que a vida é uma luta. Não deveria ser. É demasiado curta para nos obrigar a tal esforço. :)
    Mas casos como o da Aurora transformam a vida numa guerra!
    Beijinho CF

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    1. Tremenda... Eu, que lhe conheço a história, diria mesmo que tem sido uma guerra constante... Desejo-lhe toda a sorte do mundo, muito embora saiba que dificilmente isso será uma verdade fácil de acontecer...

      Beijinho Maria João :)

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  4. Só agora ao fim do dia, depois de passar a tarde a ler este excelente blog, me apercebi que é escrito a quatro mãos. penitencio-me por não ver em certos textos muito sentidos um rasgo de mulher que muito me contenta e agradeço... um blog perfeito, parabéns aos dois!
    Em relação à Aurora é diferente. A vida está longe de ser perfeita, acho-a imperfeita demais, mas tem de haver mecanismos de responsabilização não pelo infortúnio literal e figurado, mas para nos apercebermos da parcela de culpa que cada parte tem, porque a culpa não pode morrer solteira nem nas mãos da sorte e do azar.

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    1. Tuxa é verdade, somos dois. Não se penitencie, julgo que há ainda muita gente que parece não perceber isso, e portanto só lhe posso agradecer a sua simpatia comigo... :)

      A Aurora é vista por mim com um olho clínico, como muitos outros dos textos que escrevo. É claro que temos de apurar responsabilidades, mas o que eu quis frisar foi a vida dela de ora em diante, com toda a dificuldade que acarta, muito além dessa responsabilização...

      Mais uma vez obrigada. Um beijinho para si.

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