© Paulo Abreu e Lima

domingo, 15 de março de 2015

mentol

Terminei já tarde. Por entre os corredores do hospital encontro o costume, o sofrimento não tem muitas caras. Aparece estampado nos rostos como quem marcou com um ferro em brasa a tranca de um animal, salta do corpo em forma de lágrimas, gritos, gestos, actos de desembaraço, uma panóplia de astúcias que utilizamos como forma de adquirir o equilibro perdido. Lembrei-me dela, fazia anos neste dia. No dia em que perdeu a malinha que a seguia para todo o lado, neste mesmo local, com os óculos, a carteira, o pó de arroz, o pacote dos lenços de papel, a fotografia da Nossa Senhora. Saí para a rua e estava vento. Acendo um cigarro que pedi à colega que tinha deixado de fumar e fomos as duas em silêncio, em consideração, em sintonia. Passamos o portão e seguimos percursos inversos sem grandes despedidas, ela precisava de desfrutar o prazer de aspirar o fumo do pecado passados vinte dias de abstinência, e se há coisa que eu respeito é o gozo sentido, depois de cerrado por tempos demasiados. Desci a calçada devagar. Hesitei entre entrar no carro ou percorrer parte da cidade a pé, escutar as vozes do céu ou arrumar as da terra, e decidi integrar tudo com a mestria própria de quem nunca saberá muita coisa. Não saí para longe. Nunca tive dúvidas de que para ouvirmos o mundo precisamos de percorrê-lo, mas para integrá-lo é preciso senti-lo, e para isso não há melhor do que o conforto de um beijo. Felizmente chegaste logo depois e desconfiaste da minha boca doce. Foi um rebuçado, disse-te eu, com uma manha tipicamente feminina. Não foi, não foi nada disso, o cigarro era de mentol. O teu colo, como sempre, soube-me pela vida. 

2 comentários:

  1. Também penso assim, que para integramos o mundo não basta percorrê-lo, temos de o sentir. Podemos fazê-lo de muitas formas e a compaixão é uma delas. Fazemo-lo sempre que compartilhamos o sofrimento do outro e nos colocamos no seu lugar, sem que este tenha necessariamente de o saber. A compaixão que, ao contrário da pena e da piedade, se entrelaça com a vontade de ajudar, implica sempre sair de nós próprios, calçar os sapatos do outro e pisar os trilhos do seu sofrimento. E embora saibamos que não poderemos nunca sentir a mesma dor que o outro, ainda assim, não somos poupados a uma opressão no peito, a uma angústia que nos corrói a alma e nos abala a existência. Quando voltamos a descalçar os sapatos do outro, encontramos finalmente um pouco de consolo quando regressamos a nós. O consolo de um beijo com sabor a mentol e o consolo de um colo que nos acalenta as dores alheias que, entretanto, fizemos nossas.
    CF, o seu texto emocionou-me muito.
    Um beijinho

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    1. Não é fácil sentir a dor do outro. Só é possível com alguma plenitude quando somos generosos, acima de qualquer outra coisa, vejo que sabe disso... :) Um beijinho Miss Smile. E obrigada pela sua presença, sempre tão doce...

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